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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Conto breve: O escorpião

ele pode estar nos armários, nas gavetas, debaixo do fogão, dentro das meias, dos sapatos... nem sempre me lembro de olhar, distraído com as minúcias do quotidiano, mas quando começo uma calmaria, uma não-preocupação, um não pensar em nada, não consigo sustentá-lo, ele me vem à mente, e com ele o medo, medo não: pavor, pânico, o pequenino ser, quase um autômato, quase desprovido de cérebro, surge em sua qualidade de déspota implacável, dono de minha vontade, eu, que sou infinitamente mais capaz e complexo do que ele... ele surge, em imagens detalhadas, em situações dessas de qualquer thriller, ficções que minha mente tece, para dar corpo, para pintar a dependência que me liga ao insignificante animal, dependência de sua não-aparição, de sua completa ausência, oxalá inexistência, se isso fosse possível... sempre preciso me concentrar, e esperar por um longo tempo sem a visão dele... quanto maior o tempo, mais fraca vai ficando a dependência... mas...

Brinde de ano bom!

Houve um tempo em que se falava "ano bom", e não "ano novo". Não sou dessa época, mas me vi esses dias tomado daquela nostalgia renatorussoana, "saudades do que eu nunca vi"... e então me deu vontade de brindar "ano bom", e não "ano novo"... pois é... há uma carga de otimismo nessa troca: ora, o novo pode ser bom ou mau, ao passo que o bom é bom, certo?... mas há algo mais nisso: meu passado é tão pesado, tão cheio de dores e também de remorsos, que não resisto a apontar o olhar para 2011 desejando profundamente que tout va bien (que é o nome de um livro, de ensino de Francês, e uma frasesinha que me trouxe uma sensação de paz a primeira vez que ouvi...), mas não simplesmente algo convencional, expressão cristalizada que não diz o que diz, mas apenas marca uma situação; não: meu desejo de que tout va bien nasce na sola dos pés, do contato com o chão que me sustenta, e percorre todo o meu corpo, todas as minhas artérias e veias, toda carne, todo músculo, e ossos e sangue, até ganhar minha voz e se estender a todo e qualquer ser que tenha vindo a esse mundo trazendo na bagagem mais coisas boas do que ruins para ofertar, e não apenas a gula de abastecer o próprio umbigo. A você, amigo(a): que tout va bien em 2011!...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Correspondências I

Concerto para piano nr. 2, em Dó menor, de Sergej Rachmaninoff:

1º movimento: O destino anuncia a chegada da tragédia;
2º movimento: O homem apascentando a solidão;
3º movimento: O homem, desesperado, dança sozinho em sua sala, tentando afirmar a alegria.

Arpeggione sonata, em Lá menor, de Schubert:

1º movimento: brincadeira solitária, a afastar a loucura;
2º movimento: meditação;
3º movimento: mergulhando no mundo do sono.

Sonata moonlight, em Dó sustenido menor, de L. Beethoven:

1º movimento: caminhada noturna, pensamentos vários e tristes;
2º movimento: a boa notícia;
3º movimento: fúria, devida ao naufrágio de uma ilusão.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um dos fragmentos mais belos que li recentemente...

Do livro Desvario, de David Grossman (traduzido do Hebraico por George Schlesinger):

"Ela vai ao encontro dele, dispara ao encontro dele, olhos fixos no caminho, boca tensionada. Daí a pouco essa boca será beijada e há de relaxar, engolir, arder, os lábios deslizarão sobre aqueles outros lábios, de início apenas superficialmente, tocando sem tocar, então virá uma língua e desenhará seu contorno dando voltas e mais voltas, e os lábios tentarão não sorrir, e logo se ouvirá um murmúrio de prazer, não se mexa enquanto eu desenho, e de dentro dela sairá um grunhido de concordância, e aí os lábios dele se fixarão nos dela e, com toda a sua agressividade ríspida, masculina, vão sugá-los; depois se afastarão por um instante, deixando passar um suspiro quente. Por fim, os lábios vão se encontrar de novo, agora com a solenidade de um desejo realmente intenso, as línguas se entrelaçando como se fossem criaturas com vida própria, e os olhos dela se abrirão por um breve momento com um suspiro suave, os globos oculares se revirando um pouco para em seguida sumir. Sob as pálpebras semicerradas se revela uma brancura vazia, assustadora."

WHITMANIANA

You, life sailor, that has been kissed by the angel of loneliness: I'm with you!
You, mother or father, that has buried your toddler: I'm with you!
You, betrayed husband or wife: I'm with you!
You, abandoned child, that cries louder and louder, with no effect: I'm with you!

I'm with you all, and by god,
I have a simple, yet meaningful, question: who's with me?...

Conselhos de astrólogo profissional, por signo, para 2011...

CAPRICÓRNIO:

Evite mexer na agenda ou no celular de seu parceiro(a);

AQUÁRIO:

Não bata no vidro; isso pode deixar as pessoas à sua volta estressadas.

PEIXES:

Procure conhecer a dona (ou o dono) do anzol, antes de morder a minhoca;

ÁRIES:

Faça uma visita à Argentina, e volte muito tranquilo...

TOURO:

Atenção: só deus sabe o que há por trás do pano vermelho!

GÊMEOS:

Leia O homem duplicado, de José Saramago;

CÂNCER:

Evite contato com quaisquer vice-presidentes: você pode sair desacreditado(a), achando-se incompetente...

LEÃO:

Leia algo sobre os Romanov...

VIRGEM:

Não se apresse, mas não adie sempre;

LIBRA:

Não seja presunçoso(a): um dia o câmbio muda;

ESCORPIÃO:

É impressão sua se você acha que todos te odeiam...

SAGITÁRIO:

Seja precavido: você não é o único a ter flechas...

PARA TODOS OS SIGNOS:

Trabalhe, estude, corra atrás, que é muito melhor, dá muito mais resultados do que ficar se guiando por picaretas plantonistas de jornal...

Grande abraço, e um 2011 formatado de acordo com o seu sonho!

domingo, 26 de dezembro de 2010

O segredo de seus olhos

Taí um filme surpreendente. Quando a gente pensa que já viu de tudo em cinema, aparece uma produção e nos põe de boca aberta, a pensar... a pensar... Assim é o argentino O segredo de seus olhos. E é tão simples: um crime é cometido; descobre-se o culpado, ele é devidamente punido, mas... Em uma palavra: brutalidade. Essa que habita cada um de nós, é uma das palavras-chave de O segredo de seus olhos, e não falo da brutalidade do criminoso, mas sim da do... mocinho?... Não... aí é que está: o filme joga com as noções de "lado do bem" e "lado do mal", apresentando um mocinho para lá de suspeito (mas no entanto preservando personagens praticamente acima de qualquer suspeita, o que poderia ser um defeito, mas penso que não é assim). Como eu dizia: o culpado é punido, mas é só a partir daí que a originalidade de O segredo de seus olhos se impõe. A direção nos faz desconfiar de outros personagens, e ao instaurar um foco narrativo cambiante, instaura a dúvida, inexoravelmente. Não estou certo de que o filme se resolva...
Enfim: assista, se puder.
Outro ponto: de brinde há o senso de humor argentino, que é excelente. Há falas de matar de rir...
Outro ponto ainda: Ricardo Darín está soberbo. Merecia um oscar de melhor ator.

Heródoto

Sou da opinião de que é preciso ler Heródoto. Na verdade, eu já tinha essa opinião antes de lê-lo, sem saber bem por quê, meio que entrevendo razões colhidas de segunda mão. Mas agora que já o li (a sua História, edição da Ediouro), inteirinho, sei bem porque se deve lê-lo (meus motivos, obviamente, não esgotam a defesa dessa leitura, o que quer dizer que não são os únicos possíveis...). É indizível o prazer, e o crescimento que o acompanha, entranhados no ato de conhecer a obra desse historiador grego, um dos primeiros de que se tem notícia, senão o primeiro (Tucídides lhe é posterior, mas não sei se há alguém anterior...). A imaginação se expande, rumo ao infinito, quando os olhos percorrem a história das guerras médicas, da loucura de Cambises, do cerco de termópila, dos costumes dos persas, medos, citas, egípcios, tessálios... etc., etc., etc. Esse é o prazer: imaginar. O conhecimento, por sua vez, reside principalmente num aprofundamento da noção da complexidade do caldo humano, caldo em que cabem inúmeros ingredientes, muitas vezes contraditórios. Heródoto nos dá uma infinidade desses ingredientes, e do contato com eles saímos mais maduros, mais ponderados: mais humanos.
  

sábado, 25 de dezembro de 2010

Meu grito!

FORMOSA

a minha goiabeira, do quintal da santos dumont... por quantas vezes, amiga minha, em noites pesadas, de sono que mais parece vigília doente, de vigília que mais parece sono de morte, minha alma se desprenderá de meu corpo e viajará os milhares de quilômetros que nos separam, e adentrará aquela casa de vivências tão curtas, e se sentará no vão de tua forquilha maior, e se lançará ao futuro, em sonhos de vida mais abençoada, mais terna, mais doce que esta moribundície que insiste em me açoitar... ah! sonhar!... de olhos vorazes, calorosos, sonhar, amiga, sonhar!... erguer-se da vala dos males presentes, armado de fé, de fogo interior, de músculos otimistas, e de coragem, sobretudo de coragem, para enfrentar os escorpiões, as serpentes, os agentes de nosso inferno cotidiano, e construir uma vida mais fraterna, mais pacífica, mais amorosa, mais bela e mais prolífica!... entrego-me a esse ideal de conquista, sabendo que o caminho que nos leva à sua realização só pode ser um: a luta.

Para a moça da Paulista...

foi como se o mundo inteiro das belezas que eu nunca vi se condensasse,
e me aparecesse sob a forma de uma única mulher...
foi como se deus e seus arcanjos esculpissem uma estátua à sua imagem e semelhança,
e me dessem de presente a possibilidade de contemplá-la por um brevíssimo segundo...
foi como se a mais bela manhã, vermelho-amarelada, transmutada em gente,
viesse sorrir à minha frente, e me apaziguar a alma...
foi como se, enfim, eu descobrisse o que buscava, o que sempre busquei,
sem saber que o fazia, e desse descobrir me viesse a certeza que eu nunca tive:
eu VIVO...

EXPLICAÇÃO:
Este poema é para uma moça que estava de branco e verde numa agência do Banco do Brasil da Av. Paulista, por volta das 14:30 hs do dia 22 de Dezembro de 2010.
Depois eu a vi também no ônibus que pegamos, o João XXIII, por volta das 15:50 hs do mesmo dia.
Infelizmente não a abordei, porque não achei o que falar... Problemas de se ser homem...

Espero encontrá-la novamente, linda moça!...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Como assim, "vivacidade"?

   Escrevi em um de meus primeiros posts ("Como assim, 'grande literatura'?") que uma obra de arte literária é tão mais interessante quanto mais vivaz ela é, isto é, quanto mais o leitor conseguiu sentir a vida pulsar nela. Entretanto, assistindo ao Conexão Roberto D'Ávila num desses domingos, vi, e ouvi, o entrevistado ganhador do Nobel Mario Vargas Llosa fazer uma mui apurada observação: segundo ele, a obra de ficção tem uma organização, uma lógica interna, que a vida não tem, e não pode ter. Na ficção, as personagens estão lá, se enredando e desenredando em páginas que nunca mudam, e portanto podem ser relidas quando se desejar, podendo-se questioná-las metodicamente, ir e vir no tempo, e com o passar dos anos "matar" seu segredo. Na vida, as pessoas reais estão constantemente mudando, ao ponto que quando julgamos conhecê-las elas nos vêm com esse ou aquele ato absolutamente imprevisível, nos mostrando que há sempre um lado oculto, inapreendido. Sendo assim, como colocar a vida que uma obra de ficção supostamente contém como um critério atributivo de sua qualidade, se vida e ficção são, sob um ponto de vista, pólos antitéticos?...
   Não acredito ter uma resposta para essa pergunta... Mas posso tentar um esboço. Penso que para tal duas noções são fundamentais: a de passagem, ou transposição, e a de redução estruturante. A primeira é nada menos que o transporte, empreendido apenas na imaginação, da estrutura de uma determinada peça de ficção para a vida em geral, para o que dela se pôde aprender; claro está que para tanto faz-se necessário algo mais, e é aí que entra a noção de redução estruturante. Ora, quando contamos a alguém algo que nos aconteceu, procuramos inevitavelmente organizar o material de nossa narrativa em começo, meio, e fim, e também, num nível mais abstrato, em interconexões pragmáticas e semânticas, isto é, em ligações feitas segundo os critérios do sentido da história narrada - aquilo que lhe dá significação numa determinada comunidade - e do objetivo maior desse narrar - aquela ação que se busca dentre um leque consagrado socialmente, por exemplo, a ação de divertir, ou a de instruir, ou ainda a de criticar. Como essa operação implica a seleção criteriosa do que narrar, já que a vida é cheia de pequenos eventos que podem e devem ser omitidos quando se conta uma história, chamo-a de redução, e como ela confere ao que foi selecionado um corpo, uma organicidade, chamo-a estruturante. Pois bem. Isso se dá quando alguém tenta transmitir a outrém a essência de algum acontecimento que realmente se deu, mas, ao contrário do que se possa pensar, isso também se dá quando se conta uma história fictícia, porém com uma diferença decisiva: no caso da ficção, a matéria selecionada não se encontra em uma historicidade, mas sim na imaginação (obviamente alimentada por inúmeros eventos experimentados pelo artista ao longo da vida, por leituras que ele fez, por filmes aos quais assistiu, etc.). Mas o mais importante, para o meu ponto de vista, é que o artista também precisa organizar aquilo que vai contar, assim como o amigo que nos conta algo que lhe aconteceu. Ok?... Ok. Mas e daí? Afinal, como se pode sentir vida numa obra literária, algo que por definição se opõe à natureza do viver?... Respondo: amigo, ou amiga, procure sondar a si mesmo: você seria capaz de negar que a todo o momento você opera a "redução estruturante" em praticamente tudo o que lhe acontece?... Eu não. E é aí que está a chave: sentir ou não "vida" numa peça de ficção é algo que se faz mediante a comparação dessa peça, e seus muitos sentidos, com as nossas reduções estruturantes, essas que vamos fazendo ao longo da vida... Se os dois termos da comparação - de um lado, a obra; de outro, a vida estruturada (não toda, mas uma ou mais partes dela) - apresentam uma espécie de núcleo comum, uma irmandade de espírito, ou o compartilhamento de sentidos, então a obra em questão é vivaz. Se não... ela não o é (ao menos, de acordo com a nossa experiência...).
   Mas e como ficam os Kafkas desse nosso mundão incomensurável?... Seus livros são oníricos: como compará-los com a vida?... Prezado leitor: nesses casos, o que se compara com a vida não é a matéria narrada, mais especificamente: a sua dimensão denotativa, mas sim aquilo que ela - a matéria - representa, ou simboliza. Assim, tomando-se A metamorfose, por exemplo, creio que a pergunta fundamental a fazer é a seguinte: o que pode representar, metaforicamente, um jovem caixeiro ver-se numa bela manhã transformado numa barata gigante?... São várias as possibilidades: a condição humana, nossa pequenez de bichos egoístas mergulhados em nossos sonhos delirantes; ou a solidão inexorável, que confere a todo indivíduo o caráter de estranho, de estrangeiro em qualquer terra; ou ainda a tal da reificação, como querem os marxistas plantonistas... Percebeste?...
   Enfim, eu disse que não tinha uma resposta para a questão que levantei... E agora, terminado o artigo, continuo sustentando que não tenho mesmo nenhuma resposta... Mas acho que esbocei algo. Quem se habilita a novos desenvolvimentos?

sábado, 18 de dezembro de 2010

Idílio

Idílio

penso uma casa,
- mas em que casa caberíamos nós,
invólucros pulsantes da energia que move o mundo?...
penso um lugar
longe de tudo e feito de nada,
em que nosso amor, em livre curso,
se expanda e forme nosso abrigo,
e então dormiremos cercados por paredes de amor,
sobre ladrilhos de amor,
sob um teto que nada é senão amor,
e de amor nos alimentaremos,
até que não nos reste outro modo de ser,
senão amar, até o final dos tempos.

Aforismo 3

As coisas boas da vida são, guardadas as proporções, como um banho quente: em cinco minutos, delicioso; em dez, normal; e em meia hora, você se pergunta por que não ensaboou o corpo logo no começo.

Aforismo 2

Há, para o homem presunçoso, sempre uma mulher à procura de alguém que se deixe manobrar com facilidade.

Aforismo 1

A estrutura do real é inteligível na medida em que o Homem voa munido de turbinas, e misteriosa na medida em que ele voa munido de ideias.

domingo, 12 de dezembro de 2010

this place...

this place... faithless fight of mine,
my damned prayer, daily price
I pay, for the useless taste of Beauty,
smoothest, frailest ground on where I lie.

this fight... settlement of ghosts,
Memory, Finitude, Love?
a song that I sing but make no sound:
it is just life, burning in my throat.

these ghosts... pictures on my walls,
spying me wherever I walk,
pieces of myself that I collect
to build this non-place that home I call.

my place, my fight, my ghosts - my prize:
my frailest ground:
                             - my highest fly.

Poesia?

Poesia?
tst, tst, tst.
amigo,
foi-se o dia.
hoje, é bem sabido,
Murmúrio d'Água não se escuta,
O Beco é sem saída mesmo,
e n'Aurora só tem puta.
o dirigível rachou:
caiu, irresolvido, o muro,
e de todos os ismos,
restou o Sim!
(mas eu, cá do meu lado, sim senhor, arranjo um jeito de ser anacrônico...)
quisera, meu deus,
quem me dera!
rimar progresso com primavera,
ferindo o parnaso
mas não a razão!
foi-se o dia.
Poesia, hoje,
só com camisinha.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Minha vida de leitor

  Quando eu tinha seis anos havia um exemplar d'O pequeno príncipe em casa, um exemplar que eu adorava rabiscar e colorir. Rabiscava e dizia que meus rabiscos eram letras, dizia que estava escrevendo. Eu tinha, já nessa idade (e ainda tenho), uma sede infinita de saber... Queria demais aprender a ler, e a escrever. Aprendendo a ler, lia o tal pequeno príncipe e não entendia... Faltava tanta coisa no asteróide onde o menino morava... E ele morava lá sozinho!... Que coisa triste... E no final, eu lutava contra a certeza de que ele havia morrido. Enganava-me, dizendo a mim mesmo que ele voltara a seu asteróide... Não sei, mas hoje, aqui, escrevendo esse texto, vem-me a desconfiança de que foi a tristeza que a leitura de O pequeno príncipe me trouxe que me afastou da literatura por alguns anos... Mas não muitos. Três. Por volta do meu aniversário de 10 anos ganhei um livro cuja lembrança guardo até hoje com muito carinho, um livro que pretendo dar a meus filhos, quando os tiver. Se chama Quando eu voltar a ser criança, de um autor cujo nome não sei como se escreve, Janus Korczac, ou coisa parecida. É a história de um professor, que num dia, tendo uma pilha de provas para corrigir, dá um longo suspiro, e deseja de coração poder voltar a ser criança. Pois bem. Ele corrige algumas provas, e vai dormir. Na cama, deitado no escuro, aparece-lhe um pequenino gnomo, que lhe concede uma dádiva - poder voltar a ser criança, preservando a memória - e ele aceita. Enfim, não vou contar o resto da história, afinal este texto é para despertar o interesse, não é? Leia-o! Você só terá a ganhar. Continuando: novo lapso de tempo. Só voltei a ler aos doze anos, um livro da coleção vagalume, chamado Barcos de papel. Tão descartável que não me lembro de quase nada do que li nele, mas um bom divertimento para crianças. Um passatempo, como fazer palavras-cruzadas.
  Na verdade, essa classificação serve para quase tudo o que li a partir daí, até chegar a época de prestar o vestibular... Em suma, best-sellers. Vejamos: uns sete ou oito da Agatha Christie, seis do Sidney Sheldon, um do A. J. Cronin, um do J. M. Simmel, bastante depressivo, que me fez lembrar da tristeza de infância (chama-se Não matem as flores), um livro de terror, um tal 666 - no limiar do inferno, que me botou doente de medo, e me tirou o sono por uma semana. E mais: li Meu pé de laranja lima, e chorei deveras... Hoje, adulto, rio disso, mas na época levei muito a sério. Bom, acho que basta de trivialidades. Por maior carinho que eu tenha por algumas delas, é isso o que elas são. Só devo mencionar ainda dois livros de literatura juvenil que amarei para sempre, e que não são trivialidades, mas pertencem a essa época de minha vida: A hora do amor, e A hora da luta, ambos de Álvaro Cardoso Gomes. Ri muito, e também me emocionei, com os dois... (um é continuação do outro, A hora do amor é mais ingênuo, e A hora da luta bem político). Mas!... Vamos à "grande literatura"!... Aos treze anos o irmão mais velho de um amigo de escola, alguém que eu sempre visitava, para fazermos, os três, eu e os dois irmãos, campeonatos intermináveis de futebol de botão, e gente com quem eu também gostava muito de conversar, enfim, ele me indicou e me emprestou O perfume, de Patrick Süskind, afirmando se tratar de um "livraço". Levei bem uns seis meses para ler o livro inteiro, e até hoje sou capaz de dar o resumo. Li com interesse, não entendi bem "qual era a do livro", fiquei impressionado, talvez devesse dizer "desarmado" por ele. Penso, hoje, que ele pode ser alegórico, mas não consigo atinar de quê, e nem aqui é o lugar para isso... Ora, é apenas um relato histórico, pessoal!... O fato é que esse foi o único livro da "grande literatura" que eu li, na íntegra, em versão completa (traduzida...), até os dezoito anos. Por volta dos quinze li aquelas adaptações da editora Scipione, Dom Quixote, Moby Dick, O morro dos ventos uivantes, etc. (livros que mais tarde eu li, todos, na versão completa, inclusive as mais de mil páginas dos dois volumes do Quixote...). Quanto à escola... Bom, a escola: confesso que fui um péssimo aluno de Língua Portuguesa. Escrevia redações muito boas, mas não lia os livros que a professora pedia. Logo no primeiro ano ela trabalhou O Ateneu, e pediu que lêssemos. Eu comecei, mas quando li Sérgio dizer "como qualquer namorada", referindo-se a si próprio, fiquei abismado... Como é que um homem podia falar de si mesmo usando o termo "namorada"!... Larguei O Ateneu. Não. Para mim, em plena explosão hormonal dos quinze anos, simplesmente não dava para não ser homofóbico. Depois, no terceiro ano, a mesma professora pediu A noite na taverna, de Álvares de Azevedo, livro que pelo que eu ouvia nas aulas me parecia ser muito legal, mas que minha família não tinha condições de comprar (estávamos apertadíssimos), e então eu inventei uma desculpa de que "não tava a fim de ler o livro"...
  Chegada a época de prestar o vestibular, entrei num cursinho, e do começo do ano, em que eu assistia a todas as aulas, e fazia todos os exercícios, passando pelo mês de Junho, em que eu passava o período das 19hs30min até as 23hs quase todo na pastelaria ali perto, tomando cerveja, e jogando conversa fora com os amigos, e terminando em novembro, início das provas, quando eu já não tinha dinheiro nem para as cervejas, nem para o cursinho, então estudava em casa mesmo, enfim, durante esse ano (1997) desenvolveu-se em mim um apego pela literatura, uma certeza de que literatura era algo importantíssimo (para se ter uma ideia da transformação, eu inicialmente queria prestar Engenharia ou Matemática...). Foi essa certeza que me fez enfrentar textos mais difíceis, textos cuja essência me escapava, acostumado que estava às facilidades (trivialidades) da literatura de mercado. Teimei. Teimei muito. Fogo morto, por exemplo, era um livro que me desagradava imensamente, era uma batalha lê-lo, e veja: hoje é um livro com lugar cativo em minha estante... Acabei passando no vestibular da USP para o curso de Letras, de que só viria a cursar três semestres. Sim, desisti. Da primeira vez, eu desisti mesmo. Fui fazer Ciências Sociais, porque queria entender a sociedade, o mundo em que vivia, e depois fui fazer Processamento de Dados, porque queria ganhar dinheiro, porque queria viver bem... (e eu mal desconfiava de que a literatura pode proporcionar tudo isso...). Nesse tempo, nos intervalos de que dispunha, procurava ler, e de fato eu li muito, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Cyro dos Anjos, Dostoievski, Albert Camus... Meu gosto refinou-se, e mudou tanto, que hoje não consigo ler best-seller... Não é pedantaria, acredite. Não tenho paciência para "enfrentar" o tipo de livro que eu lia na primeira juventude (sim, porque eu me considero na "segunda juventude"...). De uma pequena biblioteca de pouco mais de quinhentos volumes, quase todos comprados com o meu batalhado dinheirinho, tenho três livros prediletos, três livros que sempre releio, e vou continuar relendo até a velhice: São Bernardo, de Graciliano Ramos, A brincadeira, de Milan Kundera, e O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. Três livros queridos, companheiros quando o mundo reservou-me a minha cota de solidão, fonte de empatia e compreensão, alcançadas ao me identificar com seus personagens, e por que não dizer: fonte de felicidade.

EFUSIVAMENTE

EFUSIVAMENTE

(Allegro)
os saltimbancos, loucos puríssimos,
vieram com as enxurradas de dezembro,
e bem largo, de todos a contento,
soltaram gracejos de vidro
a esmo... os saltimbancos...
na praça, metido em sua carapaça,
o louco são, seu jorge,
agarrado com sua cachaça,
saldou-os efusivamente!... efusivamente...
os saltimbancos... efusiva...

(Adagio)
não há noite estrelada em que não me lembre
dos saltimbancos...
se no futuro, porventura os encontrar
e receber de presente um de seus gracejos de vidro,
agradecerei efusivamente...

efusivamente.

I'll never forget my first

I'll never forget my first...
it was dark red, always dirty,
its right door was darker than the left,
to its motor I have a word: "merda".

we, brazilians, love good cars,
but I've never gone too far;
I only had this pretty nonsense one,
just good enough to bring me back home.

so many problems I had,
so much money I have left,
that I have in my heart the great mark:
"buses and trains rarely fall apart".

so, my grateful thanks now I shoot:
"old uno, with love, yours... fuck you!"

domingo, 5 de dezembro de 2010

Como assim, grande literatura?

  Costuma-se colocar, e eu concordo, a "literatura de mercado" como uma fonte de trivialidades, e a "grande literatura" como algo superior. O caso é que raras vezes alguém surge para explicar uma, ou outra coisa. Como assim, trivialidades? E superior, por quê? Vejamos.
  Todo best-seller obedece a certas regras de composição, muito claras, facilmente identificáveis. A mais importante delas, linha mestra, matriz das outras: ele é um produto que visa entreter: o leitor deve, ao lê-lo, "esquecer da vida" por alguns instantes, tantos quantos durar a leitura. Assim sendo, ele (o livro) não deve ser de difícil apreensão; sua linguagem deve ser acessível; ele deve "prender a atenção", geralmente mantendo em suspense acontecimentos-chave no âmbito de seu enredo.
  O que leva alguém a ler um best-seller? Ora, os motivos são variados, e podem até coincidir com aqueles pelos quais alguém busca a "grande literatura": a) entreter-se, escapar da realidade por algum tempo; b) aprender algo sobre a vida; c) deleitar-se. Esses três motivos, parece-me, mantêm e impulsionam a literatura, tanto a "de mercado" quanto a "artística" (por falta de uma palavra mais adequada), desde a invenção do livro impresso. O escapismo não é novidade moderna: vide O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, cujo personagem principal lia novelas de cavalaria para se evadir, e acaba enlouquecendo. Por outro lado, não há só um tipo de best-seller. O motivo pelo qual alguém lê Paulo Coelho provavelmente não é o mesmo daquele pelo qual alguém lê Sidney Sheldon. Minha experiência me ensina que o leitor de Paulo Coelho lê seus romances pelos três motivos que levantei aqui, por paradoxal que isso pareça (já que o primeiro e o segundo motivos contradizem-se), enquanto o leitor de Sidney Sheldon geralmente não pretende aprender com o livro que tem em mãos.
  Seguindo com o mesmo critério, o da motivação do leitor, penso que no caso da "grande literatura" fica excluído o escapismo, o mero entretenimento. Por quê? Ora, porque nas obras que compõem o acervo da "grande literatura" o que se encontra não é outra coisa senão a vida, vista de maneira profunda, preservada em sua complexidade. Para mim, um dos critérios que definem a qualidade de uma obra de ficção é justamente o que se pode chamar de sua vivacidade; em outras palavras: se eu pude sentir a vida pulsar no que acabei de ler, ou se, ao contrário, o que li era ralo e superficial. Uma obra vivaz por vezes nos ensina, por vezes nos deleita, podendo-se dizer que a sua grandeza é a medida na qual o espetáculo que ela proporciona se confunde com o espetáculo da vida.
  No entanto, para que esse espetáculo funcione, a sua camada superficial, a forma, o seu arranjo linguístico, deve ter sido trabalhado adequadamente. Esse é o segundo critério para definir a qualidade de uma obra de ficção: a beleza da linguagem. Fundamentalmente, como disse Albert Camus, todo romance é um problema de linguagem. Estendo a asserção para o conto, a crônica, e a novela.
  Assim, respondendo às perguntas iniciais: a "literatura de mercado" é uma fonte de trivialidades justamente por ter como objetivo fornecer-nos uma espécie de paraíso artificial, dentro do qual esquecemos da realidade por certo tempo; por seguir um padrão de linguagem, sem um trabalho artístico autoral, ao passo que a "grande literatura" inquieta-nos, por vezes nos afronta, nos fazendo mergulhar na realidade pela via da ficção, e dessa viagem, que pode ser perturbadora, mas que pode também consolar, saímos sempre enriquecidos.

Another english poem!

I imagine you, my son,
during the days that will come...
how's gonna be the sound of your voice?...
will I be able to guide your choices?...

I'm afraid to tell you: life
is not that great trip we'd like...
sometimes the food we need is just hope,
and sometimes the lady is not at home;

we knock on the door in vain...
but not everything is pain:
you will find a winter's fire, I'm sure;
be calm: almost everybody does...

don't get fearful, I'll be right here;
but not forever, my son... sleep.

An english poem!

I walk these colored streets
wondering all kinds of shit:
who the hell has built that big blue tower?
does happiness last more than an hour?

I see people working hard,
and a few falling apart...
a few?... no... that wouldn't be that bad...
the truth is: there's dirt under the bed.

America... there we are...
our so desired, so dreamed farm...
I do have something to say to you,
and I will do it the way I should:

learn that: the world is here, and there:
home of the brave... is everywhere.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um poema!

A FEIRA

que substituto para a amizade,
avaliar, escolher, comprar,
frutas, hortaliças, legumes e verduras!...
como está a beterraba hoje?
tem aí couve-flor, ou qualquer outra couve?

amanheci um dia, de tanta empolgação,
com cara de pepino,
e um gosto de manjericão
na ponta da língua!...
(ou seria açafrão, quem sabe,
quem sabe mesmo fruta-pão?)
vamos celebrar, raízes!...
entendo tudo o que me dizes,
tubérculo companheiro!...
falas-me de minhocas e aguaceiros
aos quais sobreviveste!...

estou feliz da vida, tanto,
que decidi convidar um casal de cebolas
para um sopa!
(que tristeza... elas ainda não sabem
que serão comidas...)

há de vir o dia
em que serei devorado com azeite,
e para que me não aproveite
da consciência azeda da situação,
me fingirei de estúpido,
e num cantar abrupto,
celebrarei todos os carnívoros,
como quem aperta a própria mão!

Outro mini-conto!

Quem é o bode?

Júlio César tinha uma coleção de discos impecável,
egrégia, preclara, conspícua!
todos comentavam no bairro onde ele morava!

os amigos, no entanto, com o passar dos anos
foram deixando Júlio César,
até não restar um sequer.

ele então riscou os discos um por um,
e passou a se divertir ouvindo as músicas pularem.

Um mini-conto!

Enigma do tempo

era órfão, e não sabia o dia, nem o mês, nem o ano de seu nascimento,
assim como não sabia a sua naturalidade.

com o tempo, e a situação, aprendera duramente uma lição estranha:
ao se questionar o passado, encontra-se sempre resposta nova,
ao passo que o futuro é constantemente repetitivo.

Inaugural!

Olá caríssimo leitor.
Sou um professor de português (recente, formado esse ano mesmo de 2010), que gosta muito de aprender e escrever sobre aquilo que aprende. Sendo assim, você verá aqui elementos e derivados do que a vida já me ensinou.
Alguns dados a meu respeito:
33 anos, sem filhos mas um sobrinho que vale por um filho, iniciante na docência, profissão eleita com muitas dificuldades, e alcançada mais dificilmente ainda.
Enfim, é isso, por enquanto. Mais por vir!
Um grande abraço.