Juventude F. C.
O
campão do Parque Hotel... Ele abaixa, cata uma pedrinha. Toma distância pra
cobrança, a barreira logo ali, perto demais – “Eles tão vindo pra frente, ô
juiz!” –, e bate... A pedrinha em três ou quatro quiques cruzando a linha do
gol, imaginária, que o chão é de terra, e não há marcação. Gol do Juventude... Corre
pro centro do campo, os amigos o cumprimentam – “Valeu, Alessandro!”. Placar:
doze a cinco. Pros adversários. Restam, no entanto, pouco mais de vinte minutos
– “Dá pra virar, dá pra virar!...”. Chuta outra pedrinha. Olha a um canto, na
cerca – “Fecharam o buraco...”. Era por lá...
Dia de
treino. Amanhã, às três, é jogo contra os moleques da favela lá de baixo. Seu Honório,
vizinho deles da Rua Venezuela, e já um velhinho aposentado, aceita o convite
pra ser técnico do Juventude. Está lá, entrando no campão, como todos, pelo
rasgo na cerca, feita de arame em tela, se arrastando – “Ai...” – ele
reclama... mas consegue. Lá dentro, o rodeiam – “Seu Honório, quê que o senhor
acha da gente usar um líbero?” – “Seu honório, um vai ter que ficar na
reserva.”. Ele apenas olha... – “Hã, líbero? É...” - e olha apenas pra bola...
– “Dê cá ela, um instantinho.” – e pede que o goleiro se aprume lá debaixo das
traves. Dá uma ajeitada com todo cuidado, limpando as pedrinhas em volta, toma
distância... e chuta... pra fora. Pede-a novamente – “só mais uma.” – e desta
vez, ela encobre o goleiro... – “Seu Honório, o senhor jogava futebol?” – “Hã?
hein, jogar?... assim, que nem vocês...” – e baixando a voz... – “Faz muito
Tempo...” – “Mas seu Honório, e o líbero?” – “Líbero?” – “É, a gente podia usar
um líbero.” – “Ah, sim! acho bom, muito bom...” - e correndo os olhos lento
pelo campão – “Líbero...”. O treino: o ataque contra a defesa, e a tática eles
mesmo decidindo, que seu Honório só senta à beira do campo, ao pé duma árvore,
e fica lá... Olhando tudo calado, na sombra.
No dia do
jogo, de manhã, Alessandro vai à casa de seu Honório, pra lembrá-lo. Lá o
velhinho o recebe, e desculpa-se que não poderá ir, que a esposa teve febre
durante a noite, e terá que cuidá-la. Nada de técnico... Volta pra casa. Depois
do almoço, o irmão é outro: brigam, e resolve não jogar. Nada de goleiro... Vai
sozinho, e à uma, hora combinada, está lá, sentado ao lado da trave, esperando
os outros. Logo chega o Vaguinho, atacante, meia-direita e ponta-que-sobra, com
a bola e os uniformes, e o irmão mais velho, que veio apitar – “Ué, cadê seu
irmão?” – já vem perguntando – “Não quer jogar.” – “Vamos lá falar com ele.” –
“Não adianta.” – “A gente vai jogar sem goleiro, então?” – “E o Fabiano?” – “Tá
sumido. Faz tempo...” – “Sabe onde ele mora?” – “Sei.” – “É longe?” – “Não. É
aqui no bairro. A gente pode ir lá chamar ele, é verdade.” – “É, ué. Não custa
nada.” – “E o resto?” – “Eles esperam a gente aqui, seu irmão explica.”. Correm
à casa dele, que é furão, e às vezes é também a única esperança de alguém
debaixo das traves. Chegando lá, estranham... tem um homem de olhos vermelhos
na porta – “É o pai dele...” – o Vaguinho murmura... e um pessoal saindo e
entrando de lá, sempre o cumprimentando, com ar sério, parecendo triste. Ficam,
os dois, um tempo quietos, sem coragem de perguntar, até que o Vaguinho, que é
mais de casa, se aproxima – “O Fabiano tá?” – “Tá, tá lá dentro. Entra...” – entram,
e descobrem que a mãe dele morreu. E gelam – “É verdade... ela tava doente...”
– Alessandro se lembra. Ele aparece – “Fala... que foi, tem jogo?” – “Não! tem
não.” – emendam rápido – “A gente só... resolveu... dar uma passadinha aqui...”
– “Ué, e cês tão de uniforme por quê?” – “...” – “Querem que eu agarre?” – “Não,
acho que não... não precisa...” – “Eu vou lá. Peraí.”. Corre dentro do quarto,
buscar a camisa de goleiro. Quando volta, já a vestindo, arriscam os pêsames, e
ele aperta rápido as mãos que estendem, olhando pro chão – “Vamos, vamos lá. Que
hora é o jogo?” – “Três...” – “Beleza. Dá tempo.”. No campão, o resto do Juventude,
o juiz, e a molecada da favela lá de baixo, o adversário, que montava time
sempre ali, na hora, com quem viesse, e não tinha nome. Quando Alessandro, que
anotava todos os resultados num caderno, com escalação e tudo, inclusive
especificando o autor de cada gol, foi perguntar-lhes o nome do time, caíram na
risada. Um deles respondia – “Põe aí: sónabuceta!” – e gargalhavam. A
administração do hotel, apesar de normalmente cobrar pelo uso do campo, meio
que fazia vista grossa pros jogos da garotada, desde que não fizessem barulho,
que incomodava os hóspedes. Era difícil, um dos motivos o craque deles, o
punheta, que era fominha que só, sendo um tal de – “Tóoca punheta!” – e – “Porra
punheta!” – e – “Caralho punheta!” – durante o jogo, que era freqüente um
funcionário vir interromper, dizendo que os hóspedes estavam reclamando. Esse
era o adversário: sem nome e sem camisa, só palavras chulas. E goleada. Mas
enfim: bola ao centro. Começa o jogo... Sofrem um gol. E depois outro. E depois
outro. E depois... Placar final: dezenove a seis. Mais um pro caderno de Alessandro,
onde já constavam um dezoito a zero, e um vinte e um a um... Voltam pra casa
até que felizes: fizeram seis gols!...
Ele
ri. Chuta uma última pedrinha, e se dirige à entrada do hotel. Lá, pergunta ao
homem detrás do balcão se pode fotografar o campo. O homem ergue a cabeça,
medindo-o de cima a baixo – “Ué... e pra quê?” – “Só de recordação. Vinha jogar
bola aqui sempre há... Bom, há treze anos atrás...” – “Ah... sei... tá, vai lá.
Fica à vontade.” – “Obrigado, hein.”. E volta ao campão, bater suas fotos.
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