Náufrago
...Vem pela calçada, apostilas e
resumos na mão, musiquinhas pra facilitar a decoreba no assobio. Passa a porta
do cursinho, cruza a rua, e senta à porta do bar. Só mais essa vez, como
sempre. O peso de oito horas de trabalho parece às vezes maior do que o peso de
todo um futuro a escolher. Ou não. Vai ver que é do futuro mesmo que se foge.
Enfim, suspira e pede uma cerveja. Dali cinco minutos, chega o amigo – “Mais
uma!” – já vem pedindo. Termina um copo – “Só vou tomar essa, depois subo.” –
diz, o amigo franzindo o pára-vento – “Ah!... Qualé?... Você não vai assistir
aula da Ruth!”. É a de Literatura, algo de que ele gosta bastante, e hoje o
tema é José Lins do Rego...
–
Ela vai passar o Fogo morto...
–
Ah, é?
–
Tá na lista da Fuvest...
–
Ah, é?
–
Vou ver se consigo ler... minha
única chance é a USP...
–
Ô pedrão! vê mais uma?
Queria ter a inconsciência tranqüila e
a aptidão alcoólica do amigo. Mal enche o copo, pede outra, entornando o
primeiro:
–
Ah!... hoje tá foda...
–
Quinta-feira é foda....
–
Depois de domingo e antes de
sábado é foda...
–
É...
–
Se é...
Ombros, pernas e braços vão
amolecendo...
–
Preciso mijar...
–
Vai lá...
O banheiro é uma privada branca por
fora e marrom por dentro, sem pia. Ele abaixa a cabeça, o mundo dá uma girada
meio brusca, ele tenta se apoiar na parede e sem querer aperta o botão da
descarga. Um riso espirra por entre os lábios, depois outro, e quando vê está
gargalhando... Volta:
–
Quer saber, eu subo na segunda
aula!
–
Grande garoto! Aula da Ruth não
dá...
–
Me lembrei duma piada.
–
Ôpa! manda. Pedrão!... siiipf!
–
O português tava chamando o
elevador...
Passa a aula da Ruth, depois a
segunda, que ninguém se lembra mais de quem é, e estão lá, ele gastando todo o
estoque de piadas que só agradam a bêbados, e o amigo rindo às lágrimas.
Pode-se ver já um pelotão de marronzinhas sobre a mesa...
–
Cara, me bateu uma fome... vou
pedir um pastel.
–
Pede dois...
Vem o pastel, vai o pastel, desce mais
uma, sai pra mijar, volta...
–
Cê vai prestar o quê mesmo?
–
Engenharia.
–
Civil?
–
Civil.
–
Difícil...
–
É. E você?
–
Tô entre Economia, Matemática,
Física, Filosofia e História...
–
Pfuvzzz!...
O amigo cospe a cerveja, e já estão
rindo de qualquer coisa.
Onze horas:
–
Preciso ir embora...
–
Eu também...
–
O negócio é pedir a conta...
–
Pois é...
–
Mais uma?
–
A saideira...
–
Pedrão! a saideira!
É a rodada das saideiras. Uma, duas,
três...
–
Pedrão! Agora a últchima.
–
Com cherteza...
No ônibus, o cobrador diz que a
passagem é dois e sessenta e ele não contém o riso:
–
Dois e sessenta, é?
–
É...
–
Dou dois e sessenta?
–
É!
E leva a mão à boca, sacudindo os
ombros, em seguida respirando fundo...
–
Se você dchiz...
E entrega o dinheiro, passa pela
roleta e senta, controlando-se.
Em
casa, todos já se deitaram. Sobe as escadas engatinhando, de repente as tripas
parecendo sofrer um cálculo logarítmico, e um gosto de fagocitose vindo à
boca... Corre ao banheiro, põe a cabeça na privada, e um trem vindo a cem
quilômetros por hora, em superfície sem atrito, desliza pela garganta e
espatifa-se na água. Pisca lento, duas vezes, observando o conteúdo... lê o
futuro: fiapos de macarrão, cascas de lentilha, carnes moídas e cacos de berinjela
– “É marcante a tensão entre o positivo e o negativo, entre formas lisas,
suaves, e outras recortadas, agressivas...” – opina uma das namoradas de
Pablito, quando este lhe mostra uma nova tela, no filme Os amores de picasso. – “Num dá pra entender nada. Acho que vou ser
economista, ou crítico de arte.” Segue pro quarto. O que quer que estivesse na
cama, foi ao chão. Deita, e está numa balsa, perdido em alto mar. As ondas
batem na proa, e lambem o fundo, e o mundo balança... – “Uôoo...”. Uma mais
forte golpeia a traseira, fazendo com que o barco embique na água... –
“Uôôooo...”. Se debate e agarra à cabeceira – “Vai virar!” – por um segundo seu
destino parecendo ser os tubarões. Até que as ondas vão, aos poucos, cessando,
e o tempo azulando, e o mar respirando sereno, marolando na quina da cama, e
pode largar a cabeceira, e fechar os olhos, e esperar um cargueiro, um
coqueiro, ou quem sabe o dia seguinte.
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