Na
Praça do Relógio
...Na
sala de aula, certos arranhões no revestimento da parede lembram os rastros de
espuma deixados por um barco nas águas duma baía, outros uma nebulosa ou a
própria Via Láctea vista de fora, e outros ainda os grandes lábios de Janaína.
No batente da porta, há teias e uma pequenina traça enfurnada numa ranhura da
madeira. Engraçado... – “Será que as aranhas não comem as traças?...” – pensa
consigo. Inspira fundo... – “E a Via Láctea vista de fora?... Como eu sei
isso?... De onde veio a imagem que tenho na cabeça?...”. Expira. Vasculha a
memória... – “Talvez uma foto de revista... Com certeza uma simulação... Não dá
pra mandar satélite pra fora da Via Láctea...”. Inspira... – “Ou será que dá?”.
Medita um segundo... Expira – “Sei lá.” Abre um livro. Doutro lado da sala, um
de terno e gravata cochila com a cabeça caída sobre a maleta; lá no fundo, duas
outras, uma de saia, outra sem sutiã, discutem sobre o trabalho de fonética que
é pra daqui a uma semana, e que ainda nem foi começado, e depois acabam
emendando numa troca de receitas de pudim; e mais ninguém. Há rumores de greve,
e em situações como essa, sobretudo em noites de quinta-feira, é comum os
alunos receberem em seus joelhos a visita duma súbita fraqueza, e então darem o
sinal ao ônibus errado, e baterem em casa mais cedo. Fecha o livro, abre o
caderno. Rabisca um desenho. Lembra de quando desenhava... Faz muito tempo. Na
infância, seus cadernos eram cheios de desenhos de animais selvagens,
super-heróis, paisagens... Rabisca um rosto de mulher. Começa pelo nariz (ele
sempre começa rostos pelo nariz...), em vista diagonal, uma curva suave
terminando num pequenino triângulo, depois o queixo... Pára um segundo,
examinando o que fez... – “Deixa pra lá...” – murmura. Abre o livro – “Mal chegou,
Drogo apresentou-se ao Major Matti...”. Um ruído de passos incrivelmente
decididos vem chegando lá do fundo do corredor e já cruza a porta. Ergue a
cabeça: lá estão três membros duma chapa que concorreu e não venceu a última
eleição pro Centro Acadêmico... Recebe um panfleto. Um de bigode fala, enquanto
o de terno e gravata agora cochila de olhos abertos e as duas trocam receitas
por telepatia. Constrange-se e presta atenção ao que o homem diz... Está
chamando a todos prum ato na Praça do Relógio, um ato de repúdio à política do
reitor que não contrata novos professores, um ato de repúdio à política do
estado que não cede aos pedidos de aumento da cota do ICMS pras universidades,
por fim um ato de repúdio à política imperialista dos EUA... Ele fecha o livro,
enquanto seis olhos acompanham seus movimentos – “Vamos lá, amigos?...
precisamos reunir o máximo de alunos neste ato, é muito importante...” – diz o
de bigode – “Claro, claro...” – ele responde, juntando seu material, e agora um
ruído de seis pés incrivelmente decididos e dois adjuntos percorre os
corredores da faculdade. Alguns dois outros alunos são pinçados em outras
salas, e já estão nas escadas, fora do prédio. O de bigode propõe irem à ECA –
Escola de Comunicações e Artes, logo ali – tentar reunir mais pessoal. Todos
concordam. Vão descendo a avenida... o de bigode engatando uma conversa com o
outro do grupo dos três, um sem bigode (o terceiro é uma baixinha, que leva uma
faixa enrolada nas mãos). Parecem continuar algo que foi interrompido pelas
visitas em sala... o de bigode – “Quanto àquela tese do Max Weber, que você
falou, de que um país socialista só poderia ser administrado por uma
burocracia, e que portanto não seria uma sociedade sem classes, pois haveria
uma classe privilegiada, a dos burocratas do Estado, você precisa entender que
não precisa ser daquele jeito. Se você pega a obra de Lênin, você vai ver o que
eu tô te dizendo. O comunismo que a gente pretende não é aquele da União
Soviética, é um comunismo diferente...” – “Sei...” – “É. É possível...” – “Mas
seria algo conquistado por meio duma revolução?” – “É. Seria.” – “Tá, e o que
vem depois duma revolução não é, via de regra, uma ditadura?” – “E nós vivemos
o quê?” – e pára, acendendo um cigarro, mirando o alto, pr’além das copas das
árvores. Dá uma tragada funda, depois soltando lento a fumaça – “É a ditadura
da burguesia...” – diz, correndo a vista em redor, onde só há árvores, dormindo
o sono apolítico dos vegetais.
ECA.
O C.A. de lá não está colaborando, diz o de bigode – “Acham que os alunos estão
em refluxo... essa é boa!”. Os dois alguns pinçados na Letras sumiram, mas o
grupo dos três nem dá pela falta, e segue
Nenhum comentário:
Postar um comentário