PASSEIO NA PAULISTA
Passeio na Paulista
...Era
uma comédia romântica, como todas as outras. Lá estavam a madura bem-sucedida
pragmática que no fundo era uma colegial suspirante romântica, o aventureiro
cafajeste niilista que no fundo era um solitário ressentido... romântico, e a
dona-de-casa pós-romântica resignada – elo
entre os dois – que no fundo era mesmo uma dona-de-casa pós-romântica
resignada, único ser, como se vê, em que essência e aparência não se
dissociavam. No final, não é preciso dizer, os primeiros se casam, enquanto a
última enxuga lágrimas cum lenço branco. É como se o produtor autor diretor ou
seja lá que raios quisesse dizer que a vida é isso aí, é sonhar, um pouco
depois casar, ter filhos, e, com o tempo, e as quedas que ele gentilmente nos
cede, é resignar-se. Ou não. Talvez o diretor autor produtor ou seja lá que
raios não quisesse dizer nada, e não quisesse mesmo coisa alguma além de
garantir a renda do pipoqueiro. E a sua própria, claro está. O fato é que eu
saí de lá sem saber bem o que dizer. Achei melhor, e creio que sabiamente,
passar a vez, ou seja, esperar até que ela se manifestasse, o que não levou
três passos – “E aí?... Gostou?” – ela perguntou, assim, de olhinhos baixos,
como a semear suspiros nos buracos da calçada. Pois é camarrrada amante de
leituras densas, eis o que a vida não se cansa de nos arrumar. Devia eu dar
mostras de minhas incursões culturais? Ora, qualquer um sabe que não. Há que se
proteger a identidade secreta!... Sob pena de sermos interceptados, e
neutralizados, como é freqüente. Sei que afastei meu discurso
anti-cinema-formulesco-hollywoodiano, que já estava bem me coçando as têmporas,
como quem afasta uma mosca varejeira, dessas que batem bem na hora da
sobremesa, doidas pra inviabilizar o nosso pão-doce. Confesso: sou fraco. Não
posso defender tese alguma. É surgirem na minha frente olhinhos amorosos de
sonhadora umedecida, prontos a enxergar nos meus a grama verde onde erguer
paredes alvas, telhados vermelhos e janelas floridas floridas, donde se vê dois
ou três moleques remelentos correndo alegremente... Ah, camarrrada, que é a
verdade? Quem sabe defini-la? Eu não sei, sei é que esse tipo de visão faz
todas as minhas convicções parecerem meras rabugices, mesquinharias. É como a
natureza, com seus vendavais e terremotos que, quando querem, nos mostram que
podemos, sim senhor, pensar o quanto quisermos, e podemos, sim senhor, edificar
o quanto quisermos, que, não senhor, não adiantará nada: seremos sempre
caniços, e nada mais. Enfim... o de sempre: o chão treme, e meu discurso, meu
nobilíssimo vocabulário, vira pó. Olhei-a sinceramente, e respondi – “Gostei. E
você?” – ao que ela respondeu, ar de satisfação – “Gostei. Muito.” Acho que fui
inconscientemente honesto. Penso que não gostei, mas no fundo devo ter gostado,
embora eu realmente discorde disso. Sei lá. Sei é que eu disse que gostei, e
ela disse que gostou, e muito, e que então começou a chover, o que me fez
refletir que às vezes a vida se assemelha a um filme ruim, e que isso não é mau.
Ela sacou do guarda-chuva, prevenida como deve ser, e eu, despre... Bom,
banalidades de lado, seguimos em frente, dividindo o dela, calorosamente mudos,
nem aí pra tarde que se despedia molhada e cinzenta por entre os prédios. Coisa
linda. Seguimos em frente!... Até a esquina, onde vive uma dessas fábricas de
hambúrgueres, em que entramos, devo dizer, por sugestão minha. Enfim, mente
poluída pede um corpo poluído. O fato é que ela gosta de molho barbecue, eu prefiro catchup, mas isso não tem importância
alguma: as batatas-fritas nos unem!... – “Engraçado. Várias passagens do filme
me lembraram você.” – ela disse, ao que eu respondi que não sabia bem o que
dizer, a menos que ela me dissesse quais passagens – “Ah... não sei... o cara
tinha um ar assim, meio outsider,
meio desapegado. Sei lá. Quer dizer... no começo, né. Depois deu pra ver que
não era bem isso.” No copriendo. Ou
melhor: compreendo. Compreendo que ela compreende bem mais do que eu pensava,
uma vez mais. Ah... as mulheres... sempre nos analisando, descavando padrões em
nosso comportamento, formulando leis gerais pra nossa personalidade. E há quem
diga que elas pensam com os ovários. Verdade é que parecem agir assim apenas
com o sexo oposto, que no resto... valha-me deus. Eu disse isso? Não, não
disse, mas é certo que pensei, sinal não só de que existo, mas também de que,
politicamente, erro. Ou não. Sei lá. O que sei é que não disse
nada, só tombei a cabeça meio pro lado, dei de ombros e belisquei uma batata,
meio sorrindo, ao que ela meio sorriu também. Êlha copriende. Quando saímos, a chuva parara havia algum tempo, e
o céu estava começando a limpar-se, deixando entrever quaisquer estrelas, com o
quê não pude reter um – “É... apesar de eu ter crescido no verde, isso aqui até
que é bonito...” – e ela gostou – “É lindo. Adoro a Paulista.” – e eu arrisquei
– “E tá um clima gostoso, agora, né?... Nem calor nem frio... Tá bom pra
caminhar...” – e ela, baixando os olhos, num semi-sorriso só de lábios – “É...
tá mesmo...” – e eu – “Não é?...” – e ela – “É...” – e eu – “É...” – e ela, num
breve, quase imperceptível suspiro – “É...” – e foi quando dum lado eu pensei
que ela já estava quase no ponto, e doutro pensei que eu não devia pensar
assim, que talvez mesmo eu não pensasse realmente assim, apenas soltasse dessas
vez por outra, naquelas, de canto de boca, reflexo dos muitos anos de frases
feitas sobre mulher e cerveja, em verdade não sei, sei é que seguimos em
frente, em silêncio, mas não daqueles que pesam, ao contrário, são expressão
duma certa leveza de alma, leveza um tanto trepidante, é verdade, naquela
mistura que todo aquele que já namorou um dia conhece bem, enfim... Seguimos em
frente, rumo à Consolação. Até que ela falou – “Mas você disse que cresceu no
verde?... Você não é daqui?” – e eu gostei da pergunta, que a resposta que tenho
sempre cai bem a dois... Ah, o lado bom de não ter raízes... Sofre-se, é
verdade, mas quanto não se tem pra contar, kammarada, quanto não se tem pra
contar!... – “É uma história complicada, mas posso dizer que até os quinze vivi
no interior.” – respondi, e ela – “Ah, é?... eu também!... quer dizer, só a
infância, né. Mas eu também sou do interior. É outra coisa, né?” – e eu me
empolguei – “Se é. Onde eu morava tinha um rio enorme e limpo, onde a gente
mergulhava, e minha vida era explorar trilhas no meio do mato de bicicleta,
atrás de córregos, cachoeiras... Se é outra coisa!... Se é!” – e ela também –
“É... onde eu morava era uma chácara, vivia aparecendo bicho por lá, e tinha um
quintalzão, eu pendurava uma rede na varanda e ficava lá, viajando... Eu adoro
o verde, a natureza, sabe?” – e eu fui em frente – “É... eu também. Não, e a
terra? Já reparou que aqui não tem terra?... As crianças daqui nunca vão saber
o que é um bicho-de-pé...” – e ela me seguiu – “É mesmo, né... Era gostosinho
de tirar...” – e eu emendei – “Me lembro... eu era porcão, tinha tanta coisa
pra fazer que achava banho uma perda de tempo. Às vezes ficava três dias sem
tomar.” – e ela emendou – “Eca!... eu também, sabia?” – e eu – “Você!” – e ela
– “É, ué... Toda criança, eu acho. Tenho um priminho de seis anos que também
não gosta de banho, só toma se for comigo...” – e foi quando dum lado eu pensei
que o ponto tinha chegado, e doutro pensei que esse tipo de pensamento um dia
me levaria à ruína, embora fosse só pensamento, coisa que, efetivamente,
ninguém lê, mas enfim, eu tive de dizer, assim, meio entredentes – “É pequeno
mas não é bobo, esse seu priminho...” – e ela só sorriu, e eu tive certeza.
Veio um cruzamento, Pamplona? Peixoto Gomide? Eu sei lá, sei é que vinha um
Corsa, e ela não viu, ou fez que não viu, e já ia atravessando, quando eu a
retive pela mão – “Cuidado!” – e ela, tomando, ou fingindo que tomando, um
sustozinho – “Upa!” – e me apertando a mão, que não soltou mais, nem eu, e
seguimos em frente... seguimos em frente!... diria, talvez, colegialmente.
Doutro lado da rua, diante do metrô, sim senhor, a natureza fez seu trabalho, e
eu, como sempre, nunca mais quis ter qualquer idéia. Pensar me deprime. Por que
será? Estará o problema no mundo, ou no ato?... Sei lá. Sei é que o pátio do
Masp, com seu escurinho, devia ser tombado pelo patrimônio histórico, e
protegido a todo custo, se é que já não foi, perdoe-me a ignorância, não sei
mesmo muita coisa. O que fizemos? Ora, nada demais, por certo, mas é que belo
mesmo é só dizer assim, numa curtinha, sem muito bafalhafa, sem muita
filosofia, naquela simplicidade que o velho bandeira, sábio dentre os sábios,
sempre soube ser o bem maior: a vida é bela. A vida é bela, meus amigos!
Esqueçam de Deus, esqueçam do diabo, esqueçam tudo que não interessa
verdadeiramente, que a vida, simplesmente, é bela. Enfim, o ponto de ônibus
chegou, o dela, obviamente, e ela disse que precisava ir, e eu disse que tudo
bem, e ela me pediu que ligasse, e eu disse que com certeza, e ela foi, e eu
resolvi que ia descer a Rebouças a pé mesmo, e que ia pegar o ônibus do outro
lado da ponte, e que essa noite ia dormir, sim senhor, como havia algum tempo
não dormia.
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