O
primeiro gol
Me lembro...
eu completava oito anos, meu irmão seis, e comemorávamos juntos, numa única
festa. Vinham os coleguinhas do colégio, pai e mãe convidavam amigos, a
molecada podendo usar, abusar e lambuzar – o quintal, que a sala era lugar pra
adultos. Uma hora, chegava um vizinho, magro e bonachão – “Ôpa, quem tá fazendo
aniversário aí, que ouvi dizer?” – e trazendo embrulhos. Corríamos até ele, e
notávamos: um era redondo. Ele estendia os braços, este, o redondo, em minha
direção, o outro a meu irmão. Eu pegava, vendo de esguelha meu irmão rasgar o
papel de presente, e exibir satisfeito um caminhão cheio de cavalinhos de
plástico na carroceria. Eu – “Diacho... quê que eu vou fazer com isso?” –
pensava. – “Não vai desembrulhar não, meu filho?” – minha mãe perguntava, o
homem sorrindo amarelo, – “Ué, é uma bola, não é?” – eu respondia – “Vou botar
lá no quarto, amanhã eu desembrulho...” – e saía. Dias depois, trocava por um
estilingue, cum moleque da rua. É como era. Vivíamos numa cidadezinha lá do
interiorzão de Goiás, hoje centro do novíssimo estado do Tocantins, onde
permaneci até os dez anos, e onde minha vida era correr as ruas de terra batida
montado na Caloi Cross, e me enfurnar
em trilhas atrás de riachos e cachoeiras, e ir mergulhar da pedra da beira-rio,
um pequeno penhasco às margens do Tocantins. Futebol?... nada. Morava defronte
ao muro do estádio municipal – só um campão cercado de mato – e meu contato com
a bola se resumia a catá-la e atirá-la de volta quando vinha quicar em frente
de casa.
Nos mudamos
então pro Rio de Janeiro. Lá, invariavelmente, me via obrigado a jogar futebol
nas aulas de educação física. E tinha uma participação até que digna de menção:
me mandavam à defesa – “Fica aí. A bola aparecendo você chuta pra frente, pro
lado, pra onde o nariz apontar, só não chuta pra trás, entendeu?” – um mais
velho, dos que eram escolhidos pra escolher time, me dizia, e eu ali ficava, às
vezes não contendo um impulso e metendo a mão ou o braço na bola... Pênalti. E
xingos, saliva respingando na testa. Às vezes, o professor organizava
campeonatos, aos domingos. Eu acordava cedo, preparava um café reforçado, o pai
reparando – “Vai aonde, filho?” – “Pra escola. Vai ter um campeonato de
futebol.” – “Ah, bom!... muito bom. Faz muito bem em praticar um esporte, você
é um garoto muito quieto, introvertido... vai te fazer bem!” - É. Lá eu ia.
Separavam os times, jogos de camisa, árbitro e tudo. Prometia a mim mesmo que
me esforçaria. Começado o jogo, disputava, roubava a bola do adversário, e
disparava em carreira – “É só correr mais que todos...” – pensava. Mas no meio
do caminho, parava, olhando em volta – “Cansei...” – dizia, arfando. Um
companheiro gritava – “Tá louco?! olha a bola!” – “Ah, é!... a bola...” – já um
do outro time passava e a levava... No final, o capitão – “Bicho, você é muito
rúim! o maior pereba que eu já vi! quê que cê veio fazer aqui?”.
E
foi assim por todo o primeiro ano, até que... aconteceu: numa aula em que o
professor cismou de, invés de dividir a turma em vários times, fazer apenas
dois, bolão contra bolão. Separavam o pessoal, cada um se posicionando onde
quisesse. Olhei: a defesa vazia... – “Ali nunca ninguém quer... e é onde sempre
me colocam...” – murmurei – “Pois é pra lá mesmo que vou” – decidia, não sem
certo temor. Sabia que lá haveria cruzamentos, e que teria de interceptá-los
com a cabeça: eu tinha um medo terrível de cabecear, a bola doía, era dura, e
nunca acertava, pegava no nariz, na nuca, e quando pegava, que às vezes,
simplesmente passava... Mas neste dia, não: neste dia, qualquer coisa lá dentro
trepidava, queria mudar, queria chegar nos mais velhos olhando firme e dizer –
“Pereba é a mãe!”. Daria um basta, seria o Interceptador, saltaria olhando pra
bola, acompanhando seu movimento, e quando ela chegasse... Pumpf!... meteria a
cabeça, a espirrando pra fora, todos boquiabertos se perguntando – “Quem é
aquela muralha ali na defesa?”. Ia pra lá, encontrava o goleiro, dois ou três
outros zagueiros pernas-de-pau, e um carinha do outro time, já prostrado na
banheira antes mesmo do jogo começar. O goleiro me olhava contrariado – “Você
não é d’outro time não?”. Respondia que não, no que ele – “Sei... é, fazer o
quê...”. Rolava a bola. Logo no comecinho, um deles escapava pela direita e
descia
O que virá,
dirão alguns, não é algo decente, algo que devamos ensinar aos nossos filhos.
Não duvido. Entretanto, na vida, por vezes em número maior do que gostaríamos,
as coisas não acontecem como planejamos, e somos obrigados a adaptar. Se apenas
os fortes, e oportunistas, sobrevivem neste mundo, é algo que não sei. Sei que
ainda estou vivo. Enfim... o fato é que aquele jogo era um enorme embolado,
alguns de camiseta, outros sem, só se sabendo quem jogava contra quem entre os
bons. Os perebas... bom, esses compunham a massa disforme, destinada apenas a
completar o quadro. Assim, num piscar de constrangimento, de incapacidade de,
posto ao chão, dizer a verdade, a visão duma saída relampejou em minha mente –
“Não serei mais zagueiro: serei atacante!... é muito melhor, todos preferem ser
atacantes. Pelé era atacante, Zico também. Zico... tão me chamando de o pequeno Zico...”.
Quando
voltei ao chão, fui à minha pequena área, e mandei uma banana ao goleiro – “Se
ferrou! você tava certo: eu era d’outro time!” – e depois corri em direção ao
centro do campo. Era o maior, tinha feito um golaço. Um mais velho, dos que
eram escolhidos pra escolher time, me dava um tapa no ombro – “Tem futuro,
moleque!...”.
É.
Tive futuro por mais ou menos cinco minutos. Depois, o jogo continuou, e eu,
triste sina, voltei a ser um pereba. Nos dias seguintes, também não deixei de
estar entre os últimos escolhidos, o incidente do meu gol sendo logo esquecido.
Mas... algo tinha mudado. Eu agora sabia o que era o futebol. Tinha feito um
gol!... Só quem já fez compreende. Se as meninas não esquecem seu primeiro
sutiã, nós tampouco esquecemos nosso primeiro gol, ainda que... bom, ainda que
tenha sido contra. E isso... isso lá também teve suas conseqüências... Passei a
evitar me esbarrar com o goleiro pelos corredores da escola, me vendo agora no
meio duma situação estranha, complicada: sempre que começava a contar a
história do meu gol a um amigo, me entusiasmava, punha ênfase nos detalhes,
aumentava, orgulhoso de ter feito um golaço, mergulhando em peixinho, e ter
sido carregado dentro de campo; à noite, porém, relembrava, e o saber que eu
sabia, a consciência da mentira, me assombrava, corroía. Com o passar dos dias,
no entanto, ia descobrindo que as coisas da vida podiam ser descascadas,
espremidas, e podíamos mesmo viver delas só o suco, escondendo as cascas e o
bagaço. Pegava então meu gol, torcia, recortava, desbastava, imaginando em
seguida um alçapão, que abria, e despejava lá os restos de minhas cirurgias.
Mais tarde, muito mais tarde, esse alçapão pulsaria, abarrotado, esta uma outra
história. O fato é que, fosse eu convidado a escolher uma data, a fixar um dia
pro fim de minha infância, e o começo da adolescência, este talvez fosse o dia
em que fiz meu primeiro gol. Quem disse que futebol não é coisa séria?
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