Pesquisar

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O LIVREIRO DE CABUL

Terminei esta semana a leitura do livro de Asne Seierstad. Devo dizer que imagino o que - como ela confessou, a guisa de prefácio - a revoltou e fez sentir ódio como nunca sentira antes na vida. De fato, as mulheres são especialmente maltratadas, na cultura afegã. Penso principalmente em Leila, mas poderia citar também Shakila, e outras. E os "meninos" filhos do patriarca livreiro também não têm vida fácil.
Mas o que quero expor aqui é o sentimento muito vivo que esse livro suscitou em mim da viabilidade de outras culturas radicalmente diferentes da minha. Sim, eu vislumbrei um sentido, uma razão de ser, para os costumes afegãos. Consegui enxergar aquilo pelo quê os talibãs lutam, e embora eu defenda uma posição diferente, e muito embora eu execre os métodos de que eles se servem, sou obrigado a admitir que eles têm a sua lógica. Não são macacos.
No entanto, continuo um adversário ferrenho do adágio francês Tout comprendre c'est tout pardonner: procuro compreender, mas me recuso a perdoar.

P. S. Lembrando que o Afeganistão não é só o Talibã, não é nem majoritariamente o Talibã.  

sábado, 19 de outubro de 2013

UMA INTERPRETAÇÃO PARA A 9º SINFONIA, DE BEETHOVEN

Me ocorreu agorinha, ouvindo-a.
Esta obra é nada mais nada menos que a biografia de Beethoven, ou, mais genericamente, a história de uma busca, a busca por felicidade.
Os três primeiros movimentos são o período pré-surdez.
No quarto movimento, ela acontece, a surdez. Não à toa, este movimento tem passagens muito parecidas com algumas do primeiro. Uma espécie de renascimento.
A melodia dominante na Ode à alegria é a expressão da felicidade, espalhada em muitos momentos de alegria. É, claro, uma retomada de algo que era perseguido nos movimentos anteriores, mas não era encontrado. Entrevia-se, no máximo esboçado. Ou seja: Beethoven, como muitos de nós, passou a juventude e a idade adulta buscando a felicidade, para só na maturidade encontrá-la, pasmem, como que perdida no passado. É na surdez que ele se descobre um homem feliz, e, uma vez mais não à toa, é no meio do quarto movimento, o movimento da surdez, que se dá a ver o coro, como a primavera sonora que devia ser a memória do Beethoven surdo. A explosão de sons do quarto movimento, o coração de Beethoven.
É isso. Espero desenvolver futuramente isto aqui.
Tchüss!

  

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

DE TODA AÇÃO

Escrevi aqui, três ou quatro posts atrás, sobre a ação aberta e a fechada: não, eu não ignoro o fato de que em certo grau toda e qualquer ação é aberta. É como eu disse: em certo grau. É impossível prever todos os desdobramentos de qualquer ação que se tome. Sim, eu sei disso. Mas... há ações com resultados mais previsíveis que outras, e há ações em que o ator intenta algo mais fechado. Forçoso é observar que se o ator intenta algo mais fechado, por meio de uma ação com resultado pouco previsível, ele está sendo mau administrador. Simples assim. Mas se ele  busca algo mais fechado por meio de uma ação testada e testada, ação com resultados razoavelmente previsíveis; ou se, por outro lado, ele intenta algo mais aberto, por meio de uma ação com maior pluralidade de resultados previsíveis, e/ou com um risco maior, isto é, com maior amplitude de desdobramentos desconhecidos e não-estimáveis, então: ele está sendo coerente. Ponto. Por enquanto.

sábado, 12 de outubro de 2013

MOMENTOS-CHAVE

Falei, no último post, em "momentos-chave". O que seriam eles? O que determina a sua especificidade?
Tentarei responder.
Na vida do dia a dia, são raras as situações em que algo de realmente vital está em jogo. Tudo bem, isso pode acontecer numa entrevista de emprego, e é uma coisa bem comum, entrevista de emprego. Nela, temos de vender o nosso peixe bem vendido, senão podemos nos ver em sérios problemas, até para comer. Mas, é possível barganhar com a situação, não dar de tudo para ela, não ceder demasiado, não trabalhar, não suar tanto assim. E assim são a maioria de nossas empreitadas: nós podemos nos esconder, ao menos parcialmente, delas; podemos só dar um tanto, guardando outro. Pois bem. Ocorre que nem sempre a coisa acontece desse jeito: há situações em que temos de nos armar com tudo o que temos, e expor o peito à espada do inimigo. Essa é uma característica do momento-chave. Cito como exemplo o caso do personagem de Will Smith no filme A procura da felicidade. 
Continuando, nos momentos "comuns" nos permitimos pequenas faltas morais, sabendo que seremos perdoados no tribunal da própria consciência. Nada de tão sério está em jogo, uma mentirinha aqui, um tropeço ali, um gole a mais, um beijo a mais, etc. Mas no momento-chave nada mais nada menos do que a vida, com tudo que nela há, é o que está em jogo. Cito dois exemplos históricos: o de Walter Benjamin, filósofo judeu alemão que se suicidou (com um tiro) para não ser capturado pelos nazistas, e o de Vercingetorix, líder da insurreição gaulesa em 52 a.C., que pôs a própria vida nas mãos de seus comandados, oferecendo-se como vítima expiatória a Júlio César, caso eles, seus comandados, decidissem não mais lutar. Eles o entregaram, de fato, e vivo, e Vercingetorix agonizou por lentos seis anos na prisão romana, até morrer, provavelmente estrangulado. Ora: temos aqui dois homens vivenciando momentos-chave por definição, momentos em que não há como barganhar, não há como "guardar uma carta na manga", pois temos de usar tudo, e tudo está em jogo.
Claro que sei que num mundo como o nosso, opaco, um momento dito "comum" pode gerar consequências de máxima importância, mas o fato é que isso não é uma mera possibilidade, estatisticamente pequena, no caso do momento-chave. Isso é, nesse caso, uma certeza. E como certeza não permite que nos enganemos e fujamos dela. Não há enganar-se. Não há fuga. Eis o momento-chave.


domingo, 6 de outubro de 2013

RADICALISMO SARTREANO

Jean-Paul Sartre, em sua conferência O existencialismo é um humanismo, defende a tese radicalíssima de que "todo homem, ao se escolher, está a um só tempo escolhendo toda a humanidade", não exatamente com essas palavras, mas com esse sentido. Complicado. Me lembra Kant, que afirmava que o homem deve agir de modo a que se possa extrair de toda ação sua a máxima (moral) relativa à situação que a enquadra. Complicado outra vez. Trata-se, como se vê, grosso modo de dizer a mesma coisa servindo-se de palavras diferentes. Muito bem. Ocorre-me que eu, pobre e reles humanoide, frequentemente estou cansado demais para escolher toda a humanidade, e/ou para engendrar máximas morais com as minhas ações, e esse é o meu ponto aqui: a vida nos verga, não somos super-heróis, santos, ou coisa que o valha. Em muitos casos, talvez a maioria, só queremos escolher a nós mesmos, só respondemos por nós mesmos, e ainda assim com uma certa esperança de encontrar uma lei branda. Haverá sim momentos em que teremos de escolher toda a humanidade, mas esses são os momentos-chave, assunto para outro post. Nas demais situações nossas escolhas têm um escopo limitado, bem limitado.