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segunda-feira, 29 de abril de 2013

PASSEIO NA PAULISTA


Passeio na Paulista

...Era uma comédia romântica, como todas as outras. Lá estavam a madura bem-sucedida pragmática que no fundo era uma colegial suspirante romântica, o aventureiro cafajeste niilista que no fundo era um solitário ressentido... romântico, e a dona-de-casa pós-romântica resignada – elo entre os dois – que no fundo era mesmo uma dona-de-casa pós-romântica resignada, único ser, como se vê, em que essência e aparência não se dissociavam. No final, não é preciso dizer, os primeiros se casam, enquanto a última enxuga lágrimas cum lenço branco. É como se o produtor autor diretor ou seja lá que raios quisesse dizer que a vida é isso aí, é sonhar, um pouco depois casar, ter filhos, e, com o tempo, e as quedas que ele gentilmente nos cede, é resignar-se. Ou não. Talvez o diretor autor produtor ou seja lá que raios não quisesse dizer nada, e não quisesse mesmo coisa alguma além de garantir a renda do pipoqueiro. E a sua própria, claro está. O fato é que eu saí de lá sem saber bem o que dizer. Achei melhor, e creio que sabiamente, passar a vez, ou seja, esperar até que ela se manifestasse, o que não levou três passos – “E aí?... Gostou?” – ela perguntou, assim, de olhinhos baixos, como a semear suspiros nos buracos da calçada. Pois é camarrrada amante de leituras densas, eis o que a vida não se cansa de nos arrumar. Devia eu dar mostras de minhas incursões culturais? Ora, qualquer um sabe que não. Há que se proteger a identidade secreta!... Sob pena de sermos interceptados, e neutralizados, como é freqüente. Sei que afastei meu discurso anti-cinema-formulesco-hollywoodiano, que já estava bem me coçando as têmporas, como quem afasta uma mosca varejeira, dessas que batem bem na hora da sobremesa, doidas pra inviabilizar o nosso pão-doce. Confesso: sou fraco. Não posso defender tese alguma. É surgirem na minha frente olhinhos amorosos de sonhadora umedecida, prontos a enxergar nos meus a grama verde onde erguer paredes alvas, telhados vermelhos e janelas floridas floridas, donde se vê dois ou três moleques remelentos correndo alegremente... Ah, camarrrada, que é a verdade? Quem sabe defini-la? Eu não sei, sei é que esse tipo de visão faz todas as minhas convicções parecerem meras rabugices, mesquinharias. É como a natureza, com seus vendavais e terremotos que, quando querem, nos mostram que podemos, sim senhor, pensar o quanto quisermos, e podemos, sim senhor, edificar o quanto quisermos, que, não senhor, não adiantará nada: seremos sempre caniços, e nada mais. Enfim... o de sempre: o chão treme, e meu discurso, meu nobilíssimo vocabulário, vira pó. Olhei-a sinceramente, e respondi – “Gostei. E você?” – ao que ela respondeu, ar de satisfação – “Gostei. Muito.” Acho que fui inconscientemente honesto. Penso que não gostei, mas no fundo devo ter gostado, embora eu realmente discorde disso. Sei lá. Sei é que eu disse que gostei, e ela disse que gostou, e muito, e que então começou a chover, o que me fez refletir que às vezes a vida se assemelha a um filme ruim, e que isso não é mau. Ela sacou do guarda-chuva, prevenida como deve ser, e eu, despre... Bom, banalidades de lado, seguimos em frente, dividindo o dela, calorosamente mudos, nem aí pra tarde que se despedia molhada e cinzenta por entre os prédios. Coisa linda. Seguimos em frente!... Até a esquina, onde vive uma dessas fábricas de hambúrgueres, em que entramos, devo dizer, por sugestão minha. Enfim, mente poluída pede um corpo poluído. O fato é que ela gosta de molho barbecue, eu prefiro catchup, mas isso não tem importância alguma: as batatas-fritas nos unem!... – “Engraçado. Várias passagens do filme me lembraram você.” – ela disse, ao que eu respondi que não sabia bem o que dizer, a menos que ela me dissesse quais passagens – “Ah... não sei... o cara tinha um ar assim, meio outsider, meio desapegado. Sei lá. Quer dizer... no começo, né. Depois deu pra ver que não era bem isso.” No copriendo. Ou melhor: compreendo. Compreendo que ela compreende bem mais do que eu pensava, uma vez mais. Ah... as mulheres... sempre nos analisando, descavando padrões em nosso comportamento, formulando leis gerais pra nossa personalidade. E há quem diga que elas pensam com os ovários. Verdade é que parecem agir assim apenas com o sexo oposto, que no resto... valha-me deus. Eu disse isso? Não, não disse, mas é certo que pensei, sinal não só de que existo, mas também de que, politicamente, erro. Ou não. Sei lá. O que sei é que não disse nada, só tombei a cabeça meio pro lado, dei de ombros e belisquei uma batata, meio sorrindo, ao que ela meio sorriu também. Êlha copriende. Quando saímos, a chuva parara havia algum tempo, e o céu estava começando a limpar-se, deixando entrever quaisquer estrelas, com o quê não pude reter um – “É... apesar de eu ter crescido no verde, isso aqui até que é bonito...” – e ela gostou – “É lindo. Adoro a Paulista.” – e eu arrisquei – “E tá um clima gostoso, agora, né?... Nem calor nem frio... Tá bom pra caminhar...” – e ela, baixando os olhos, num semi-sorriso só de lábios – “É... tá mesmo...” – e eu – “Não é?...” – e ela – “É...” – e eu – “É...” – e ela, num breve, quase imperceptível suspiro – “É...” – e foi quando dum lado eu pensei que ela já estava quase no ponto, e doutro pensei que eu não devia pensar assim, que talvez mesmo eu não pensasse realmente assim, apenas soltasse dessas vez por outra, naquelas, de canto de boca, reflexo dos muitos anos de frases feitas sobre mulher e cerveja, em verdade não sei, sei é que seguimos em frente, em silêncio, mas não daqueles que pesam, ao contrário, são expressão duma certa leveza de alma, leveza um tanto trepidante, é verdade, naquela mistura que todo aquele que já namorou um dia conhece bem, enfim... Seguimos em frente, rumo à Consolação. Até que ela falou – “Mas você disse que cresceu no verde?... Você não é daqui?” – e eu gostei da pergunta, que a resposta que tenho sempre cai bem a dois... Ah, o lado bom de não ter raízes... Sofre-se, é verdade, mas quanto não se tem pra contar, kammarada, quanto não se tem pra contar!... – “É uma história complicada, mas posso dizer que até os quinze vivi no interior.” – respondi, e ela – “Ah, é?... eu também!... quer dizer, só a infância, né. Mas eu também sou do interior. É outra coisa, né?” – e eu me empolguei – “Se é. Onde eu morava tinha um rio enorme e limpo, onde a gente mergulhava, e minha vida era explorar trilhas no meio do mato de bicicleta, atrás de córregos, cachoeiras... Se é outra coisa!... Se é!” – e ela também – “É... onde eu morava era uma chácara, vivia aparecendo bicho por lá, e tinha um quintalzão, eu pendurava uma rede na varanda e ficava lá, viajando... Eu adoro o verde, a natureza, sabe?” – e eu fui em frente – “É... eu também. Não, e a terra? Já reparou que aqui não tem terra?... As crianças daqui nunca vão saber o que é um bicho-de-pé...” – e ela me seguiu – “É mesmo, né... Era gostosinho de tirar...” – e eu emendei – “Me lembro... eu era porcão, tinha tanta coisa pra fazer que achava banho uma perda de tempo. Às vezes ficava três dias sem tomar.” – e ela emendou – “Eca!... eu também, sabia?” – e eu – “Você!” – e ela – “É, ué... Toda criança, eu acho. Tenho um priminho de seis anos que também não gosta de banho, só toma se for comigo...” – e foi quando dum lado eu pensei que o ponto tinha chegado, e doutro pensei que esse tipo de pensamento um dia me levaria à ruína, embora fosse só pensamento, coisa que, efetivamente, ninguém lê, mas enfim, eu tive de dizer, assim, meio entredentes – “É pequeno mas não é bobo, esse seu priminho...” – e ela só sorriu, e eu tive certeza. Veio um cruzamento, Pamplona? Peixoto Gomide? Eu sei lá, sei é que vinha um Corsa, e ela não viu, ou fez que não viu, e já ia atravessando, quando eu a retive pela mão – “Cuidado!” – e ela, tomando, ou fingindo que tomando, um sustozinho – “Upa!” – e me apertando a mão, que não soltou mais, nem eu, e seguimos em frente... seguimos em frente!... diria, talvez, colegialmente. Doutro lado da rua, diante do metrô, sim senhor, a natureza fez seu trabalho, e eu, como sempre, nunca mais quis ter qualquer idéia. Pensar me deprime. Por que será? Estará o problema no mundo, ou no ato?... Sei lá. Sei é que o pátio do Masp, com seu escurinho, devia ser tombado pelo patrimônio histórico, e protegido a todo custo, se é que já não foi, perdoe-me a ignorância, não sei mesmo muita coisa. O que fizemos? Ora, nada demais, por certo, mas é que belo mesmo é só dizer assim, numa curtinha, sem muito bafalhafa, sem muita filosofia, naquela simplicidade que o velho bandeira, sábio dentre os sábios, sempre soube ser o bem maior: a vida é bela. A vida é bela, meus amigos! Esqueçam de Deus, esqueçam do diabo, esqueçam tudo que não interessa verdadeiramente, que a vida, simplesmente, é bela. Enfim, o ponto de ônibus chegou, o dela, obviamente, e ela disse que precisava ir, e eu disse que tudo bem, e ela me pediu que ligasse, e eu disse que com certeza, e ela foi, e eu resolvi que ia descer a Rebouças a pé mesmo, e que ia pegar o ônibus do outro lado da ponte, e que essa noite ia dormir, sim senhor, como havia algum tempo não dormia. 

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