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sábado, 25 de maio de 2013

JUVENTUDE F. C.


Juventude F. C.

O campão do Parque Hotel... Ele abaixa, cata uma pedrinha. Toma distância pra cobrança, a barreira logo ali, perto demais – “Eles tão vindo pra frente, ô juiz!” –, e bate... A pedrinha em três ou quatro quiques cruzando a linha do gol, imaginária, que o chão é de terra, e não há marcação. Gol do Juventude... Corre pro centro do campo, os amigos o cumprimentam – “Valeu, Alessandro!”. Placar: doze a cinco. Pros adversários. Restam, no entanto, pouco mais de vinte minutos – “Dá pra virar, dá pra virar!...”. Chuta outra pedrinha. Olha a um canto, na cerca – “Fecharam o buraco...”. Era por lá...
Dia de treino. Amanhã, às três, é jogo contra os moleques da favela lá de baixo. Seu Honório, vizinho deles da Rua Venezuela, e já um velhinho aposentado, aceita o convite pra ser técnico do Juventude. Está lá, entrando no campão, como todos, pelo rasgo na cerca, feita de arame em tela, se arrastando – “Ai...” – ele reclama... mas consegue. Lá dentro, o rodeiam – “Seu Honório, quê que o senhor acha da gente usar um líbero?” – “Seu honório, um vai ter que ficar na reserva.”. Ele apenas olha... – “Hã, líbero? É...” - e olha apenas pra bola... – “Dê cá ela, um instantinho.” – e pede que o goleiro se aprume lá debaixo das traves. Dá uma ajeitada com todo cuidado, limpando as pedrinhas em volta, toma distância... e chuta... pra fora. Pede-a novamente – “só mais uma.” – e desta vez, ela encobre o goleiro... – “Seu Honório, o senhor jogava futebol?” – “Hã? hein, jogar?... assim, que nem vocês...” – e baixando a voz... – “Faz muito Tempo...” – “Mas seu Honório, e o líbero?” – “Líbero?” – “É, a gente podia usar um líbero.” – “Ah, sim! acho bom, muito bom...” - e correndo os olhos lento pelo campão – “Líbero...”. O treino: o ataque contra a defesa, e a tática eles mesmo decidindo, que seu Honório só senta à beira do campo, ao pé duma árvore, e fica lá... Olhando tudo calado, na sombra.
No dia do jogo, de manhã, Alessandro vai à casa de seu Honório, pra lembrá-lo. Lá o velhinho o recebe, e desculpa-se que não poderá ir, que a esposa teve febre durante a noite, e terá que cuidá-la. Nada de técnico... Volta pra casa. Depois do almoço, o irmão é outro: brigam, e resolve não jogar. Nada de goleiro... Vai sozinho, e à uma, hora combinada, está lá, sentado ao lado da trave, esperando os outros. Logo chega o Vaguinho, atacante, meia-direita e ponta-que-sobra, com a bola e os uniformes, e o irmão mais velho, que veio apitar – “Ué, cadê seu irmão?” – já vem perguntando – “Não quer jogar.” – “Vamos lá falar com ele.” – “Não adianta.” – “A gente vai jogar sem goleiro, então?” – “E o Fabiano?” – “Tá sumido. Faz tempo...” – “Sabe onde ele mora?” – “Sei.” – “É longe?” – “Não. É aqui no bairro. A gente pode ir lá chamar ele, é verdade.” – “É, ué. Não custa nada.” – “E o resto?” – “Eles esperam a gente aqui, seu irmão explica.”. Correm à casa dele, que é furão, e às vezes é também a única esperança de alguém debaixo das traves. Chegando lá, estranham... tem um homem de olhos vermelhos na porta – “É o pai dele...” – o Vaguinho murmura... e um pessoal saindo e entrando de lá, sempre o cumprimentando, com ar sério, parecendo triste. Ficam, os dois, um tempo quietos, sem coragem de perguntar, até que o Vaguinho, que é mais de casa, se aproxima – “O Fabiano tá?” – “Tá, tá lá dentro. Entra...” – entram, e descobrem que a mãe dele morreu. E gelam – “É verdade... ela tava doente...” – Alessandro se lembra. Ele aparece – “Fala... que foi, tem jogo?” – “Não! tem não.” – emendam rápido – “A gente só... resolveu... dar uma passadinha aqui...” – “Ué, e cês tão de uniforme por quê?” – “...” – “Querem que eu agarre?” – “Não, acho que não... não precisa...” – “Eu vou lá. Peraí.”. Corre dentro do quarto, buscar a camisa de goleiro. Quando volta, já a vestindo, arriscam os pêsames, e ele aperta rápido as mãos que estendem, olhando pro chão – “Vamos, vamos lá. Que hora é o jogo?” – “Três...” – “Beleza. Dá tempo.”. No campão, o resto do Juventude, o juiz, e a molecada da favela lá de baixo, o adversário, que montava time sempre ali, na hora, com quem viesse, e não tinha nome. Quando Alessandro, que anotava todos os resultados num caderno, com escalação e tudo, inclusive especificando o autor de cada gol, foi perguntar-lhes o nome do time, caíram na risada. Um deles respondia – “Põe aí: sónabuceta!” – e gargalhavam. A administração do hotel, apesar de normalmente cobrar pelo uso do campo, meio que fazia vista grossa pros jogos da garotada, desde que não fizessem barulho, que incomodava os hóspedes. Era difícil, um dos motivos o craque deles, o punheta, que era fominha que só, sendo um tal de – “Tóoca punheta!” – e – “Porra punheta!” – e – “Caralho punheta!” – durante o jogo, que era freqüente um funcionário vir interromper, dizendo que os hóspedes estavam reclamando. Esse era o adversário: sem nome e sem camisa, só palavras chulas. E goleada. Mas enfim: bola ao centro. Começa o jogo... Sofrem um gol. E depois outro. E depois outro. E depois... Placar final: dezenove a seis. Mais um pro caderno de Alessandro, onde já constavam um dezoito a zero, e um vinte e um a um... Voltam pra casa até que felizes: fizeram seis gols!...
Ele ri. Chuta uma última pedrinha, e se dirige à entrada do hotel. Lá, pergunta ao homem detrás do balcão se pode fotografar o campo. O homem ergue a cabeça, medindo-o de cima a baixo – “Ué... e pra quê?” – “Só de recordação. Vinha jogar bola aqui sempre há... Bom, há treze anos atrás...” – “Ah... sei... tá, vai lá. Fica à vontade.” – “Obrigado, hein.”. E volta ao campão, bater suas fotos.

O leitor me desculpe: relendo meu conto, percebo que não tem uma unidade, não tem coesão, e leva nada a lugar nenhum. Mas, querendo alterá-lo, não posso. Me parece que digo o que é necessário, tudo e apenas. São recordações do campão... Recordo derrotas homéricas? Não: recordo seu Honório, que aliás não tinha esse nome, e o verdadeiro o esquecimento já me levou; recordo Fabiano – dele dizer o quê... – e a molecada da favela lá de baixo; e recordo, sobretudo, o Juventude Futebol Clube, que do nome só tinha a juventude, pois não era clube, sendo mínimo o futebol. Na verdade, éramos só um bando de perebas, excluídos das aulas de Educação Física, que não se cansavam de perder e, no fazê-lo, aprender um pouquinho que fosse. Saudades.

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