Pesquisar

terça-feira, 14 de maio de 2013

NA PRAÇA DO RELÓGIO


Na Praça do Relógio

...Na sala de aula, certos arranhões no revestimento da parede lembram os rastros de espuma deixados por um barco nas águas duma baía, outros uma nebulosa ou a própria Via Láctea vista de fora, e outros ainda os grandes lábios de Janaína. No batente da porta, há teias e uma pequenina traça enfurnada numa ranhura da madeira. Engraçado... – “Será que as aranhas não comem as traças?...” – pensa consigo. Inspira fundo... – “E a Via Láctea vista de fora?... Como eu sei isso?... De onde veio a imagem que tenho na cabeça?...”. Expira. Vasculha a memória... – “Talvez uma foto de revista... Com certeza uma simulação... Não dá pra mandar satélite pra fora da Via Láctea...”. Inspira... – “Ou será que dá?”. Medita um segundo... Expira – “Sei lá.” Abre um livro. Doutro lado da sala, um de terno e gravata cochila com a cabeça caída sobre a maleta; lá no fundo, duas outras, uma de saia, outra sem sutiã, discutem sobre o trabalho de fonética que é pra daqui a uma semana, e que ainda nem foi começado, e depois acabam emendando numa troca de receitas de pudim; e mais ninguém. Há rumores de greve, e em situações como essa, sobretudo em noites de quinta-feira, é comum os alunos receberem em seus joelhos a visita duma súbita fraqueza, e então darem o sinal ao ônibus errado, e baterem em casa mais cedo. Fecha o livro, abre o caderno. Rabisca um desenho. Lembra de quando desenhava... Faz muito tempo. Na infância, seus cadernos eram cheios de desenhos de animais selvagens, super-heróis, paisagens... Rabisca um rosto de mulher. Começa pelo nariz (ele sempre começa rostos pelo nariz...), em vista diagonal, uma curva suave terminando num pequenino triângulo, depois o queixo... Pára um segundo, examinando o que fez... – “Deixa pra lá...” – murmura. Abre o livro – “Mal chegou, Drogo apresentou-se ao Major Matti...”. Um ruído de passos incrivelmente decididos vem chegando lá do fundo do corredor e já cruza a porta. Ergue a cabeça: lá estão três membros duma chapa que concorreu e não venceu a última eleição pro Centro Acadêmico... Recebe um panfleto. Um de bigode fala, enquanto o de terno e gravata agora cochila de olhos abertos e as duas trocam receitas por telepatia. Constrange-se e presta atenção ao que o homem diz... Está chamando a todos prum ato na Praça do Relógio, um ato de repúdio à política do reitor que não contrata novos professores, um ato de repúdio à política do estado que não cede aos pedidos de aumento da cota do ICMS pras universidades, por fim um ato de repúdio à política imperialista dos EUA... Ele fecha o livro, enquanto seis olhos acompanham seus movimentos – “Vamos lá, amigos?... precisamos reunir o máximo de alunos neste ato, é muito importante...” – diz o de bigode – “Claro, claro...” – ele responde, juntando seu material, e agora um ruído de seis pés incrivelmente decididos e dois adjuntos percorre os corredores da faculdade. Alguns dois outros alunos são pinçados em outras salas, e já estão nas escadas, fora do prédio. O de bigode propõe irem à ECA – Escola de Comunicações e Artes, logo ali – tentar reunir mais pessoal. Todos concordam. Vão descendo a avenida... o de bigode engatando uma conversa com o outro do grupo dos três, um sem bigode (o terceiro é uma baixinha, que leva uma faixa enrolada nas mãos). Parecem continuar algo que foi interrompido pelas visitas em sala... o de bigode – “Quanto àquela tese do Max Weber, que você falou, de que um país socialista só poderia ser administrado por uma burocracia, e que portanto não seria uma sociedade sem classes, pois haveria uma classe privilegiada, a dos burocratas do Estado, você precisa entender que não precisa ser daquele jeito. Se você pega a obra de Lênin, você vai ver o que eu tô te dizendo. O comunismo que a gente pretende não é aquele da União Soviética, é um comunismo diferente...” – “Sei...” – “É. É possível...” – “Mas seria algo conquistado por meio duma revolução?” – “É. Seria.” – “Tá, e o que vem depois duma revolução não é, via de regra, uma ditadura?” – “E nós vivemos o quê?” – e pára, acendendo um cigarro, mirando o alto, pr’além das copas das árvores. Dá uma tragada funda, depois soltando lento a fumaça – “É a ditadura da burguesia...” – diz, correndo a vista em redor, onde só há árvores, dormindo o sono apolítico dos vegetais.
ECA. O C.A. de lá não está colaborando, diz o de bigode – “Acham que os alunos estão em refluxo... essa é boa!”. Os dois alguns pinçados na Letras sumiram, mas o grupo dos três nem dá pela falta, e segue em frente. Os corredores, e salas, estão vazios. Num mural, o cartaz de Homens de papel, que será encenada no Teatro Laboratório. Finalmente uma sala com aula, em que uma numerosa dezena de alunos ouve letárgica o de bigode chamá-los ao ato na Praça do Relógio, e vai girando a cabeça, de boca aberta, como jacarés tomando sol à beira dum rio, enquanto o de bigode caminha até a porta – “Quem vai nos acompanhar nesse ato?... Alguém?... Pessoal, é muito importante a participação de todos, a nossa universidade está sendo sucateada... Bom, se alguém se interessar, pode nos alcançar no corredor, ok?... Brigado pela atenção.” – diz, e depois vira as costas, e fecha a porta, seguido pelo vácuo silencioso dos olhos lá de dentro. Continuam pelo corredor. Uma sala vazia, outra sala vazia, numa terceira um funcionário corcunda, vestido de azul, passando um rodo no chão. Levanta o rosto na direção deles – “Hã?... Cês tão procurando quem?... Ah... Iii... Tst, tst. Tem aula hoje aqui não, rapaz, só uma ou outra...” – diz, abrindo um franco sorriso de três dentes no rosto enrugado. Deixam-no... na última sala, pelo vidro da porta podem ver um professor velho e calvo, os parcos fios de cabelo completamente brancos, percorrer cuma aluna as linhas dum texto aberto no colo dela, enquanto outros dois apenas ouvem. O de bigode entreabre a porta, e pede licença pra falar rapidamente à turma. O professor assente. Entra, e fecha a porta, o resto do grupo ficando de fora. Fica lá alguns minutos e meio, enquanto observam, de fora, apenas os olhares baixos dos alunos, e do professor. O de bigode abre a porta pra sair, e podem ouvir o professor murmurar – “Boa sorte.” – antes que a feche. Terminadas as salas, deixam o prédio, e estão no estacionamento, lá no fundo o Teatro Laboratório, e à frente, o belo melancólico do vazio da Praça do Relógio. O de bigode se despede – “Bom, gente... é isso aí. Acho que duma forma geral a ação de hoje foi positiva, os alunos nos ouviram...” – “Tanto a Letras quanto a ECA tavam vazias...” – interrompe o sem bigode – “É, tavam... Acho que a gente pode com ações mais incisivas trazer mais gente e formar um movimento mais sólido, é só uma questão de continuidade no trabalho. O pessoal vai assimilando... Bom, eu vou caminhar até a História, alguém me acompanha?... Não?... Então até, pessoal, brigado pela participação, e a gente continua amanhã.” – e sai. Os outros dois, o sem bigode e a baixinha, estão agora de mãos dadas e só então ele percebe que são namorados. A baixinha senta num banco da praça, o sem bigode logo depois, passando o braço pelos ombros dela, e ele pode ouvi-los cantando enquanto se afasta – “Morte bela, sentinela sou, do peito desse meu irmão, que se vai...” – e circunda o laguinho, e pára. Um vento frio vem arranhar o rosto, enquanto apenas olha... longe, as luzes do Shopping Villa-lobos e das dezenas de prédios à beira da Marginal Pinheiros espalham-se pelo rio, e por um brevíssimo segundo, parecem compensar o céu sem estrelas, e sem lua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário