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segunda-feira, 6 de maio de 2013

NÁUFRAGO


Náufrago

...Vem pela calçada, apostilas e resumos na mão, musiquinhas pra facilitar a decoreba no assobio. Passa a porta do cursinho, cruza a rua, e senta à porta do bar. Só mais essa vez, como sempre. O peso de oito horas de trabalho parece às vezes maior do que o peso de todo um futuro a escolher. Ou não. Vai ver que é do futuro mesmo que se foge. Enfim, suspira e pede uma cerveja. Dali cinco minutos, chega o amigo – “Mais uma!” – já vem pedindo. Termina um copo – “Só vou tomar essa, depois subo.” – diz, o amigo franzindo o pára-vento – “Ah!... Qualé?... Você não vai assistir aula da Ruth!”. É a de Literatura, algo de que ele gosta bastante, e hoje o tema é José Lins do Rego...
         Ela vai passar o Fogo morto...
         Ah, é?
         Tá na lista da Fuvest...
         Ah, é?
         Vou ver se consigo ler... minha única chance é a USP...
         Ô pedrão! vê mais uma?
Queria ter a inconsciência tranqüila e a aptidão alcoólica do amigo. Mal enche o copo, pede outra, entornando o primeiro:
         Ah!... hoje tá foda...
         Quinta-feira é foda....
         Depois de domingo e antes de sábado é foda...
         É...
         Se é...
Ombros, pernas e braços vão amolecendo...
         Preciso mijar...
         Vai lá...
O banheiro é uma privada branca por fora e marrom por dentro, sem pia. Ele abaixa a cabeça, o mundo dá uma girada meio brusca, ele tenta se apoiar na parede e sem querer aperta o botão da descarga. Um riso espirra por entre os lábios, depois outro, e quando vê está gargalhando... Volta:
         Quer saber, eu subo na segunda aula!
         Grande garoto! Aula da Ruth não dá...
         Me lembrei duma piada.
         Ôpa! manda. Pedrão!... siiipf!
         O português tava chamando o elevador...
Passa a aula da Ruth, depois a segunda, que ninguém se lembra mais de quem é, e estão lá, ele gastando todo o estoque de piadas que só agradam a bêbados, e o amigo rindo às lágrimas. Pode-se ver já um pelotão de marronzinhas sobre a mesa...
         Cara, me bateu uma fome... vou pedir um pastel.
         Pede dois...
Vem o pastel, vai o pastel, desce mais uma, sai pra mijar, volta...
         Cê vai prestar o quê mesmo?
         Engenharia.
         Civil?
         Civil.
         Difícil...
         É. E você?
         Tô entre Economia, Matemática, Física, Filosofia e História...
         Pfuvzzz!...
O amigo cospe a cerveja, e já estão rindo de qualquer coisa.
Onze horas:
         Preciso ir embora...
         Eu também...
         O negócio é pedir a conta...
         Pois é...
         Mais uma?
         A saideira...
         Pedrão! a saideira!
É a rodada das saideiras. Uma, duas, três...
         Pedrão! Agora a últchima.
         Com cherteza...
No ônibus, o cobrador diz que a passagem é dois e sessenta e ele não contém o riso:
         Dois e sessenta, é?
         É...
         Dou dois e sessenta?
         É!
E leva a mão à boca, sacudindo os ombros, em seguida respirando fundo...
         Se você dchiz...
E entrega o dinheiro, passa pela roleta e senta, controlando-se.
Em casa, todos já se deitaram. Sobe as escadas engatinhando, de repente as tripas parecendo sofrer um cálculo logarítmico, e um gosto de fagocitose vindo à boca... Corre ao banheiro, põe a cabeça na privada, e um trem vindo a cem quilômetros por hora, em superfície sem atrito, desliza pela garganta e espatifa-se na água. Pisca lento, duas vezes, observando o conteúdo... lê o futuro: fiapos de macarrão, cascas de lentilha, carnes moídas e cacos de berinjela – “É marcante a tensão entre o positivo e o negativo, entre formas lisas, suaves, e outras recortadas, agressivas...” – opina uma das namoradas de Pablito, quando este lhe mostra uma nova tela, no filme Os amores de picasso. – “Num dá pra entender nada. Acho que vou ser economista, ou crítico de arte.” Segue pro quarto. O que quer que estivesse na cama, foi ao chão. Deita, e está numa balsa, perdido em alto mar. As ondas batem na proa, e lambem o fundo, e o mundo balança... – “Uôoo...”. Uma mais forte golpeia a traseira, fazendo com que o barco embique na água... – “Uôôooo...”. Se debate e agarra à cabeceira – “Vai virar!” – por um segundo seu destino parecendo ser os tubarões. Até que as ondas vão, aos poucos, cessando, e o tempo azulando, e o mar respirando sereno, marolando na quina da cama, e pode largar a cabeceira, e fechar os olhos, e esperar um cargueiro, um coqueiro, ou quem sabe o dia seguinte.

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