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domingo, 19 de dezembro de 2010

Como assim, "vivacidade"?

   Escrevi em um de meus primeiros posts ("Como assim, 'grande literatura'?") que uma obra de arte literária é tão mais interessante quanto mais vivaz ela é, isto é, quanto mais o leitor conseguiu sentir a vida pulsar nela. Entretanto, assistindo ao Conexão Roberto D'Ávila num desses domingos, vi, e ouvi, o entrevistado ganhador do Nobel Mario Vargas Llosa fazer uma mui apurada observação: segundo ele, a obra de ficção tem uma organização, uma lógica interna, que a vida não tem, e não pode ter. Na ficção, as personagens estão lá, se enredando e desenredando em páginas que nunca mudam, e portanto podem ser relidas quando se desejar, podendo-se questioná-las metodicamente, ir e vir no tempo, e com o passar dos anos "matar" seu segredo. Na vida, as pessoas reais estão constantemente mudando, ao ponto que quando julgamos conhecê-las elas nos vêm com esse ou aquele ato absolutamente imprevisível, nos mostrando que há sempre um lado oculto, inapreendido. Sendo assim, como colocar a vida que uma obra de ficção supostamente contém como um critério atributivo de sua qualidade, se vida e ficção são, sob um ponto de vista, pólos antitéticos?...
   Não acredito ter uma resposta para essa pergunta... Mas posso tentar um esboço. Penso que para tal duas noções são fundamentais: a de passagem, ou transposição, e a de redução estruturante. A primeira é nada menos que o transporte, empreendido apenas na imaginação, da estrutura de uma determinada peça de ficção para a vida em geral, para o que dela se pôde aprender; claro está que para tanto faz-se necessário algo mais, e é aí que entra a noção de redução estruturante. Ora, quando contamos a alguém algo que nos aconteceu, procuramos inevitavelmente organizar o material de nossa narrativa em começo, meio, e fim, e também, num nível mais abstrato, em interconexões pragmáticas e semânticas, isto é, em ligações feitas segundo os critérios do sentido da história narrada - aquilo que lhe dá significação numa determinada comunidade - e do objetivo maior desse narrar - aquela ação que se busca dentre um leque consagrado socialmente, por exemplo, a ação de divertir, ou a de instruir, ou ainda a de criticar. Como essa operação implica a seleção criteriosa do que narrar, já que a vida é cheia de pequenos eventos que podem e devem ser omitidos quando se conta uma história, chamo-a de redução, e como ela confere ao que foi selecionado um corpo, uma organicidade, chamo-a estruturante. Pois bem. Isso se dá quando alguém tenta transmitir a outrém a essência de algum acontecimento que realmente se deu, mas, ao contrário do que se possa pensar, isso também se dá quando se conta uma história fictícia, porém com uma diferença decisiva: no caso da ficção, a matéria selecionada não se encontra em uma historicidade, mas sim na imaginação (obviamente alimentada por inúmeros eventos experimentados pelo artista ao longo da vida, por leituras que ele fez, por filmes aos quais assistiu, etc.). Mas o mais importante, para o meu ponto de vista, é que o artista também precisa organizar aquilo que vai contar, assim como o amigo que nos conta algo que lhe aconteceu. Ok?... Ok. Mas e daí? Afinal, como se pode sentir vida numa obra literária, algo que por definição se opõe à natureza do viver?... Respondo: amigo, ou amiga, procure sondar a si mesmo: você seria capaz de negar que a todo o momento você opera a "redução estruturante" em praticamente tudo o que lhe acontece?... Eu não. E é aí que está a chave: sentir ou não "vida" numa peça de ficção é algo que se faz mediante a comparação dessa peça, e seus muitos sentidos, com as nossas reduções estruturantes, essas que vamos fazendo ao longo da vida... Se os dois termos da comparação - de um lado, a obra; de outro, a vida estruturada (não toda, mas uma ou mais partes dela) - apresentam uma espécie de núcleo comum, uma irmandade de espírito, ou o compartilhamento de sentidos, então a obra em questão é vivaz. Se não... ela não o é (ao menos, de acordo com a nossa experiência...).
   Mas e como ficam os Kafkas desse nosso mundão incomensurável?... Seus livros são oníricos: como compará-los com a vida?... Prezado leitor: nesses casos, o que se compara com a vida não é a matéria narrada, mais especificamente: a sua dimensão denotativa, mas sim aquilo que ela - a matéria - representa, ou simboliza. Assim, tomando-se A metamorfose, por exemplo, creio que a pergunta fundamental a fazer é a seguinte: o que pode representar, metaforicamente, um jovem caixeiro ver-se numa bela manhã transformado numa barata gigante?... São várias as possibilidades: a condição humana, nossa pequenez de bichos egoístas mergulhados em nossos sonhos delirantes; ou a solidão inexorável, que confere a todo indivíduo o caráter de estranho, de estrangeiro em qualquer terra; ou ainda a tal da reificação, como querem os marxistas plantonistas... Percebeste?...
   Enfim, eu disse que não tinha uma resposta para a questão que levantei... E agora, terminado o artigo, continuo sustentando que não tenho mesmo nenhuma resposta... Mas acho que esbocei algo. Quem se habilita a novos desenvolvimentos?

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